Benedicto Mello e a tela da Amazônia

João Carlos Pereira

Sem que haja uma razão especial – embora saudade seja razão mais do que especial para se lembrar de alguém -, tenho pensado demais, nos últimos dias, no meu querido amigo Benedicto Mello, que tanto tempo nos deixou. Há um quadro dele na sala de casa e, outro, no corredor. Preciso de mais paredes e de menos janelas para os quadros que tanto amo. Infelizmente não há como fazer um puxadinho e vou espalhando telas onde há espaço digno para elas. Conheci uma pessoa que gostava muito de quadros, mas estava sem lugar para sua coleção. Um dia, olhando para o forro, descobriu que poderia cobri-lo com pinturas emolduradas. Ficou uma doidice, mas cada casa tem suas regras e cada pinacoteca, um dono.

Por onde quer que passe, sempre vejo um trabalho do Bené. Dele e de outros artistas daqui e de fora. Mas saudade mesmo sinto do Bené. Também sinto do Ruy Meira e dele falarei semana que vem. Às vezes, me coloco diante de um óleo, que comprei,a prazo, numa exposição que fez no Tribunal do Trabalho, onde, bem antes de mim, dirigiu o setor de cerimonial, e permito viajar na paisagem feita de troncos de árvores. Deveria ter comprado a série completa, porque ele esticava a venda em quantas vezes pudesse pagar. Eu senti vergonha de abrir um crediário igual ao das Casas Pernambucanas e perdi a chance.

Mesmo que não tivesse um rabisco, um bilhete, ou apenas uma foto do Bené, já estaria feliz. A obra de Benedicto Mello, monumental, rara, continua à espera de um livro que seu filho, Sérgio, prepara, talvez para celebrar os 95 anos do pai, em 26 de maio do ano que vem. Ela falará do artista. Eu sinto falta do pintor, mas a saudade mesmo é do Bené.

Benedicto Antônio Soares de Mello é um nome pomposo demais para uma alma sem luxos. Por isso, os que o amavam – e eram tantos – reduziram seu nome à forma carinhosa de Bené, própria dos Beneditos, mas que nele parecia única. Não havia, exceto para quem não o conhecia, como confundir o “Bené”, do Benedicto Mello, com o do Benedito Nunes. Parece que cada um possuía alguma coisa de diferente.

Mestre da pintura em Belém, ao lado de Ruy e João Pinto Martins, foi decisivo para a implantação do pensamento renovador aqui. Era um dos vértices da Trindade Santa da arte moderna entre nós. Sem Benedicto Mello, haveria muitas páginas em branco no livro ainda não escrito, ou, se escrito, não publicado, sobre pintores paraenses do século XX. E quando fosse manuseado, o leitor, mesmo que desatento, encontraria a lacuna e perguntaria a razão. Erro de impressão? Não. Se Benedito Mello não tivesse sido pintor, haveria um lugar à sua espera, para o dia que resolvesse produzir. Ele era um predestinado à e um servo da beleza.

No trato pessoal, era uma criatura diferente. Tirava tudo por menos. Não se sabia que tivesse desafetos e representava o que se chamaria de homem cordial. Aliás, cordialíssimo. Em tantos anos de amizade, nunca o flagrei falando mal de alguém pelo simples prazer de desdenhar. Se não podia elogiar, calava-se. E seu silêncio era tão eloquente, que impressionava. Também não era homem de concordar com tudo para poder ser aceito nas rodas. Tinha opiniões e as defendia. Era leal em seus afetos e gostava – como gostava! – de um uísque.

Aqueles olhos muito claros, o porte elegante, perdido apenas no final da vida, quando os remédios que tomava o deixaram inchado, devem ter enlouquecido muitas mulheres. O jeito principesco de ser seduzia sem desejar seduzir, também. Uma vez ele me disse: “sabe, João, eu fico até envaidecido. Dizem que meu filho, o Júnior, é muito parecido comigo. Isso me dá uma certa vaidade”. O Júnior era modelo e foi um dos rapazes mais bonitos de sua geração. Mas parecido, mesmo, com ele, é o Sérgio. Até o bigode, até a voz, até os pequenos gestos são do pai. É tal e qual. Em tudo.

Benedicto Mello deu um duro danado para educar os filhos e manter a casa. Foi o criador da Pinacoteca Municipal e implantou seu atelier de restauro. Ganhou prêmios no Brasil e no exterior. Atuou como curador e restaurador. Sua palavra tinha enorme importância. Escreveu um livro sobre restauração e pintou, pintou muito. A Amazônia, sua terra, era sua tela em branco a receber o traço largo, forte, firme, generoso e belo.

Depois que operou o coração, numa época em que isso era motivo de sobressalto, (hoje ainda é, mas nem tanto) aderiu ao modelo saudável de viver. Metia-se num moleton, calçava tênis, colocava um fone no ouvido e saia pela Doca a exercita-se. Um dia, nos encontramos numa padaria e estranhei o traje. “É minha fantasia de astronauta, João”. Foi uma risada geral.

Nossa amizade ganhou força, quando ele ainda era diretor da Galeria “Theodoro Braga” e eu, repórter encarregado do setor de artes, no “Liberal”, passava quase todos os dias por lá. As conversas, às vezes, entravam pela noite. Diretor da pinacoteca, um dia precisou atender umsa pessoas e interrompeu a entrevista pelo meio. Eu fiquei, como se diz, no vácuo. Bendito vácuo. Permaneci olhando a exposição e fui embora, sem me despedir, porque o homem estava envolvido com os visitantes ilustres.

No jornal, depois de preparar o feijão-com-arroz do dia a dia, me dediquei ao texto sobre o Bené. Foi o primeiro que produzi depois de uma lição da minha diretora e amiga, a jornalista Ana Diniz. No meio de uma conversa sobre qualidade de texto, ela me sugeriu ler um livro do Graciliano Ramos e me concentrar na escrita, não na história. Fiquei de tal modo encantado com aquela maneira de dizer, que resolvi ousar. Preparei umas três ou quatro laudas, deixei sobre a mesa dela e, vejam que infantilidade, me escondi atrás da porta, de onde podia ver sua reação. Ao final da revisão, ela gritou para a Redação inteira escutar: “ééééguaaaaa! O homem se soltou. Cadê o João?” Eu apareci todo nervoso, tentando fingir naturalidade. “Segui teu conselho, Ana. E fiz isso. Não ficou bom”? Desde então, meu texto passou a ter meu jeito. “O homem se soltou” foi o maior elogio que já recebi na vida. O Bené nunca soube desse episódio. Graças a ele, que me forneceu material, pude voar.

Toda vez que olho para um quadro seu, entendo um pouco melhor o meu mestre Graciliano, que desidratava a palavra à exaustão. Cortava até o osso. Dissecava o verbo ao seu limite. No texto do velho Graça, em geral reescritos pelo menos dez vezes, não havia sequer vírgula sobrando. Nas telas do Bené, do querido Bené, não se encontra uma linha a mais do que o necessário.

Não por acaso, há pouco, o chamei de mestre.

Benedicto Mello foi mestre e amigo raro. Ele faz muita falta a este mundo sem cores e com muita tela borrada.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem:   Benedicto Mello — Série Caminhos, 1997. Acervo da Câmara Municipal de Belém.

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