O que eu sei, o que elas sabem e o que jamais aprenderei
Diário de um desespero – ou quase – LXIX
João Carlos Pereira
Temos ao todo quatro filhas. Duas já bateram asas, cuidam de suas vidas fora de casa. Duas estão conosco, mas não por vontade. A mais nova planeja voltar para o Canadá, onde já morou. A mais velha é mais sonhadora e pensa em viver na vila de Jericoacoara, onde não há posto de saúde, banco e a internet não é lá essas coisas. Mas cada uma segue os próprios desejos. Eu, como já disse aqui, não cultivo mais sonhos. Prefiro desenhar meu futuro.
As que conseguiram fazer seu rumo, conheceram, quando crianças, a liberdade do Mosqueiro, onde passavam férias. As outras foram eventualmente à ilha, a Salina ou ao Marajó. São todas novas e ainda terão, se Deus quiser, muita vida pela frente para armar a tenda onde desejarem.
Preso em casa, ocupando cela especial na solitária a que o corona vírus nos impôs, lembro, cada vez mais, da minha infância e comparo com a delas. Fui menino-cachorro-vira-lata, criado na rua. Elas, meninas-passarinho, viram a vida, quase sempre, da janela de um apartamento. Sei que não existe medidor de felicidade, mas penso que, olhando duas realidades, saí ganhando.
Para começo de conversa, morei muitos anos em casa, onde havia jardim, quintal, galinheiro e garagem. Todos os meus colegas também. Aprendemos, desde cedo, a pular muro e a subir em árvore. Domingo à tarde, quando nossa rua tirava sesta, nos especializávamos em escalar pés de abiu ou de abacate para comer fruta no pé. Ou melhor, no alto.
Descobrimos que, se para nós quebrar caco de vidro preso aos muros era moleza, para ladrão deveria ser uma sopa no mel. Mas que ladrão havia? Naquele tempo, a maioria queria galinha ou miudalhas esquecidas do lado de fora. Uma ocasião, três larápios entraram no quintal de casa e levaram umas bacias velhas, o ferro a carvão e as cadeiras que estavam no terraço.
Presos, tiveram de restituir tudo. Os policiais que, nos anos 70, faziam ronda atrás de maconheiros, deram uns tabefes na cara deles para ver se criavam vergonha, mas já eram caso perdido. Reclamaram de ter de ir para a Central de Polícia, onde o chamado “pátio” era o lugar mais limpo da cidade. De hora em hora, turmas de detentos eram despertadas para lavar o que havia acabado de receber faxina completa. Castigo e tanto. Quem me contou? Ninguém. Eu vi, na madrugada em que fui prestar queixa e pegar as bacias de volta.
Estudávamos de manhã, os meninos do meu quarteirão, quase todos honrados modernistas e alguns poucos maristas, invariavelmente os mais abastados. De tarde fazíamos as tarefas escolares e íamos às aulas particulares. O sol começando a “esfriar” era a senha para a molecada ganhava rua e brincar “na porta”. A iluminação pública era precaríssima, na nossa muito amada avenida “Gentil Bittencourt”, próxima ao Colégio Moderno. Na pista de terra, ainda víamos o trilho do bonde.
Nossas brincadeiras ficavam divididas entre a dos meninos, a das meninas e aquelas em que podíamos nos misturar. Para jogar “ferrinho” “peteca” e “pião”, nos acabarmos nos carrinhos de rolamento e fazer cerol, apenas os meninos. Elas estavam liberadas para andar de bicicleta conosco e correr nas “piras”. Essas brincadeiras de pira variavam de tipo: “pira-cola”, “pira-estátua”, “pira alta”, “pira-te-esconde”, “31 alerta 1,2,3”. Desde cedo nos ensinavam a ser machistas e a ter clubes do Bolinha e da Luluzinha. Espero que minha neta cresça longe desses muros, mas temo pela força daquela senhora que prega azul e rosa e, agora, quer fazer concurso para escolher as quatro máscaras mais bonitinhas. O prêmio será passar um dia com ela. Sabe quando eu deixaria um filho meu correr esse risco? Já basta a doutrinação involuntária. Isso pode ser contagioso.

Havia outra brincadeira, esse do tipo comum-de-dois, chamada “pó-ruge-batom”. Os meninos escolhiam seus pares e rolava um questionariozinho besta. Cada acerto era premiado com um beijo da menina, que indicava o lugar onde queria ser tocada pelos lábios do menino. Pó, era na testa; ruge, nas bochechas, e batom, na boca. Todo mundo queria batom, mas a decisão era delas.
Cresci entre árvores, bichos, livros e gente. Como não havia celular, se a ordem fosse voltar às 7, às sete tínhamos de estar em casa para jantar e, depois, se houvesse permissão (e boas notas no boletim), retornaríamos para o corre-corre na “porta”. Foi na exploração pelos quintais que vi, pela primeira vez na vida, uma mucura com um monte de mucurinhas nas costas. O colega que estava comigo, se acabando de tanto comer abiu, num galho bem alto, me disse que o bicho tinha gosto de galinha, mas nunca pude comprovar. Minhas filhas são incapazes de descrever uma mucura. Se calhar, nem sabem o que é isso.
Uma vez, me contaram que uma criança, ao se aproximar de um passarinho pela primeira vez, ficou tão assustada que exclamou: “mãe, olha um Twitter!”. Pode ser piada, mas está dentro do contexto atual de desconhecimento geral das coisas, que, se for verdade, não é para ninguém se espantar.
Se fiz de um tudo, do permitido ao proibido, como sair de madrugada e ajudar um amigo a pegar a chave do carro da mãe, apenas para dar uma voltinha pela cidade, de madrugada, sem medo de blitz ou de acidente, vivendo a liberdade consentida, não posso dizer o mesmo de minhas filhas, que já nasceram com “chip” instalado no corpo e, sem que precisassem de professor, conhecem tudo de informática e de tecnologia.
Mesmo que eu viva mais 20 anos, não serei capaz de aprender o que elas, simplesmente, já esqueceram. O que dói, mesmo, não é não saber, é a cara desprezo, ou de piedade, com que me olham, como se dissessem: “pai, a vida não é mais para amadores”. Nunca vou me esquecer de uma frase do Carlos Sampaio, outro degredado do paraíso da tecnologia: “ João, te conforma. Nós estamos fora.” Elas, porém, nunca subiram em árvore ou viram mucura.
Um dia desses, precisei participar de uma reunião virtual e não conseguia acessar a sala de jeito nenhum. Todos já estavam se vendo e apenas eu penava para entrar. Quando ouvia, não era visto. Era uma agonia. Depois de todos os convidados terem me dado várias indicações, o gerente da chamada teve uma sacada genial e aconselhou: “João, não tem uma criança de cinco anos aí na tua casa para te ajudar?”. De cinco não havia, mas de dezoito, sim. Com um clique, ela resolveu um problema que eu não solucionaria nem que passasse doze meses tentando.
A vida é assim e, daqui para frente, tenho impressão, as crianças nascerão não com um chip, mas com dois. E quem não tentar aprender, pode ir para a fila dos renegados, porque a vida, do jeito como está agora, não caberá dentro de um computador. Será o próprio computador.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Aglaia — A plateia do trapézio, 1982.
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