Os do mal e os do bem: cada um no seu quadrado

Diário de um desespero – ou quase – LXXXVII

João Carlos Pereira

Ferrante I, ou Ferdinando de Aragão, o D. Ferrante era espanhol, condição que não o impediu de assumir o trono de Nápoles, na segunda metade do século XV. Era filho bastardo de Afonso de Aragão com uma amante chamada Giraldona Carlino. Ferrante deve ter sido contaminado pela feiúra do nome da mãe e foi um dos homens mais horrendos da história. Era pior que o famoso, mas nunca visto, cão chupando manga. Tudo nele parecia medonho: o nariz terrivelmente adunco, maior que o de uma arara, a boca rasgada e desarrumada (imagino os dentes…), os olhos empapados, o cabelo desgrenhado e “penteado” no formato de cuia, mais o barrigão. O conjunto chegava a ser monstruoso, mas o busto que há no Museu do Louvre o transformou num Tom Cruise dos feios. Quem olha aquela peça, nem imagina o quanto o escultor foi bondoso. Ou o valor que recebeu para dar uma repaginada completa na desgraça humana.

Há pessoas que são terríveis, do ponto de vista físico, como Quasímodo, por exemplo, o célebre Corcunda de Notre Dame. Seu coração era tão puro, que todos que o conheciam esqueciam de seus traços. O mesmo se deu com a Fera, por quem a Bela se apaixonou. Se Ferrante tivesse uma gota de bondade circulando em seu sangue, até daria para esquecer, por alguns minutos, seu jeito monstruoso de ser. Alguém dirá que ele estimulava as artes e a leitura, tanto que mandou fazer cópia de muitos livros, numa época anterior a Guttemberg. Consta que favoreceu o comércio e estimulou a produção de gado. Se mais fez de bom, não sei.

O que traz o rei Ferrante para esta história foi seu gênio mau. O homem era um demônio. Na sua época, não se falava em Alzheimer, mas ele morreu completamente gagá, memória apagada, e surdo como um poste de ferro, mesmo material de seu coração. Assemelhava-se a um morto vivo, enfiado nos ombros, olhando para o nada, torturado, talvez, pelo mal que amou praticar. Seus inimigos, se soubessem que ao que seriam submetidos, desejariam não ter nascido. Sempre que topava com um potencialmente ameaçador – e não eram poucos – mandava matar e empalhar. Aos poucos, construiu uma cena em seu palácio semelhante à Santa Ceia, feita apenas por homens a quem odiou profundamente. Faltava um Judas. A peste não lhe deu tempo para terminar a composição macabra. Por um triz, o cardeal della Rovere, depois eleito papa Júlio II, não teve essa honra. Méritos não lhe faltavam.

Não sei se o rei Ferrante mereceu alguma estátua em Nápoles. Se houver, estará fadada à depredação. Ela e de muitos homens que agiram com fúria, em algum momento da história. Dar poder a certas pessoas pode ser mais castigo do que prêmio. Um dia a fatura chega, nem que seja com séculos de atraso. Mas como apresentar a conta impressa na modernidade a um tirano do passado? O século XXI descobriu um jeito estranho: derrubar as estátuas que foram erguidas em sua homenagem.

Falei sobre esse assunto na crônica de ontem e ele rendeu muito pano para manga, como se dizia antigamente. Muita gente reagiu. De todas as sugestões que li, uma me chamou especial atenção: a da professora Ana Célia Bahia Silva, minha amiga querida. Em vez de retirar as estátuas de homens cuja ação, “correta” no passado, mas reavaliada pelo metro do presente e rebaixada ao item “cruel”, para lugares de pouca visibilidade, sempre acompanhadas de uma placa explicativa de seus atos, como propus, ela observou que poderiam ser confinadas a um museu ou qualquer espaço onde fosse possível contar a história de sua maldade.

No caso das estátuas maiores, seriam mantidas sobre seus pedestais, tendo como tornozeleira uma placa bastante visível, indicando quais os crimes que o ilustre cometeu. A vigorar essa norma, até o Marquês de Pombal, cujo belíssimo monumento domina a confusa rotunda do centro de Lisboa, seria penalizado. Os jesuítas teriam todo direito de reivindicar uma reparação.

A questão é grave e recomenda-se prudência. O “museu dos renegados”, nome que daria ao espaço destinado, em algum lugar do mundo, a esse tipo de acervo, também poderia ser uma espécie de “jardim dos esquecidos”, sabe Deus onde, aos quais o visitante teria acesso, mediante compra de ingresso e parte da venda seria revertido para causas sociais, tipo movimento negros ou questões indígenas. Alguém dirá: haveria gente interessada? Se lhe interessa saber, asseguro: muita gente. Por essa determinação respondem as filas nas portas dos Museus da Tortura e o setor mais terrível do Museu de Madame Tussaud, de Londres. O de Amsterdã não possui essa ala. Falou em sangue, o povo curte.

Se pensasse como os iconoclastas contemporâneos, a criadora do Museu de Cera mais famoso do mundo não teria dado espaço aos cruéis da História. A menos que, à noite, como filme em que as criaturas de cera de um museu criam vida, graças a uma placa egípcia, os do mal não se misturam com os do bem. Quem desejar vê-los, terá o valor do bilhete aumentado. Simples assim.

Não sou advogado do diabo, mas penso que a idéia esbarraria na questão do patrimônio histórico de cada país. É muita burocracia envolvendo um problema que nem a Ana Célia, nem eu, poderemos resolver.

Apenas colocamos nossa colher num angu de muitos caroços, que foi servido para a reflexão da humanidade. A verdade é uma só e incontestável: as nações que não conhecem seu passado estarão sujeitas à repetição dos gestos que mancharam sua trajetória.

Passado e futuro, apesar de impalpáveis, são tempos muito sérios. A responsabilidade sobre eles é totalmente do presente.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

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Imagem: Siron Franco — Sem título, 1980

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