Nada muda, um sambinha corta o silêncio e as estrelas mandam lembranças

Diário de um desespero – ou quase – LXXXV

João Carlos Pereira

Era começo da noite e um sambinha animava o bairro de São Brás. Não sei dizer de onde vinha, mas ele devia fazer a felicidade de alguns animados brincantes e das pessoas que aproveitavam a disposição para festa, num tempo triste como este. O som chegava sem despertar em mim alguma vontade de dançar. A melancolia da hora era propícia ao silêncio, não ao samba. Minha alma precisa de noite alta, baixas temperaturas e de solidão, não de samba. Ainda assim, me deixei ficar escutando a música que, não demorou muito, parou.

De casa, meu único mundo há três meses, vejo a vida passar e, sinceramente, não tenho mais desejo de sair. Acho que a gente se ajusta ao confinamento e, mais (ou pior) do que isso, passa amá-lo. Talvez seja uma versão pandêmica da síndrome de Estocolmo, esse estado psicológico particular, no qual uma criatura submetida a um tempo prolongado de intimidação passa a ter simpatia, falam até mesmo em amizade e amor, por um agressor. Nada a ver como corona vírus, mas aplicável ao isolamento no qual nos projetou.

Durante o dia, vejo ao longe o rio e, mais de perto, a cidade que se movimenta em ritmo já quase normal. Se eu tiver que experimentar o sofrimento provocado por esse vilão, não será por falta de respeito à ordem de permanecer em casa, lavar as mãos de minuto a minuto, colocar máscara, caso precise entrar no elevador e criar dependência do álcool 70%. Se sobreviver à pandemia, sairei dela com vários “tocs”.

Quando tudo começou e a televisão começou mostrar gestos de solidariedade entre vizinhos que não se conheciam, com pessoas indo à janela cantar, rezar ou tocar algum instrumento, testemunhei muita gente fazendo parecido. Os dias foram passando e parece que o sentimento murchou. Cada um se isolou em seu quadrado e a vida seguiu o ritmo de sempre. Com tudo aberto novamente, parece que, tendo aonde ir, as solidão a ser um problema de cada um.

Foi bonito ver muitas campanhas para arrecadação de cestas básicas, dinheiro e roupas para quem, de uma hora para outra, ficou sem ter de onde tirar o sustento. Tanta bondade me comovia. De repente, não se fala mais nisso. Será que a vida retornou ao normal no sentido do esquecimento da dor dos outros e tudo não foi além de uma chuva de verão?

Nunca tive esperanças na chegada de um homem novo, muito menos de um “novo normal”, essa abstração maluca, inventada como uma dose de esperança ao velho mundo de sempre. Que novo normal, que novo homem, pleno de sentimentos nobres, emergiriam desse momento desesperado? O que vi de postagem de gente luxando, exibindo seus haveres, celebrando não sei que felicidade, enquanto o mundo gemia e os países cobriam-se de luto, me fez entender que tudo permanecerá igual como sempre foi.

O silêncio das ruas que ajudou a levar o sambinha até minha sacada me cobriu novamente de solidão. No céu, as constelações que mais amo, as “Três Marias” e o “Cruzeiro do Sul”, brilhavam. Acho que, percebendo que eu as admirava, mandavam um alô. A vida é complicada. Viver não é para amadores. Eu sou amador.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Ronaldo Miranda — A Janela, 1996.

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