Como se faz um santo – passo a passo de uma longa burocracia
Diário de um desespero – ou quase – LXXXIV
João Carlos Pereira
Diz a lenda que, em Salvador, há 365 igrejas – uma para cada dia do ano. Pode ser mais do que lenda, mas é provável que haja mais terreiros do que igrejas. Em Belém, segundo pesquisa realizada pela Unama, nos anos 90, a Pedreira é o bairro que mais abriga terreiros de culto afro ou afro-brasileiro. Na época, eram contados às dezenas. Hoje o número deve ter aumentado. A Igreja Católica sabe exatamente quantos templos possui e a quantidade de Santos que saíram de sua linha de produção, em dois mil anos, mas dificilmente se encontrará alguém a enumerá-los de cabeça, sem ajuda de uma “cola”. O Google fala em mais de vinte e mil, entre santos e beatos. Os que estão na fila de espera não entram na estatística, mas um dia chegarão lá.
O Pará tem chance de acrescentar umas páginas ao livro dos santos, de domínio exclusivo do vaticano, com os nomes de Severa Romana e D. Eliseu e D. Vicente Zico. A burocracia para se fazer um santo é tamanha, que até cientistas incrédulos são convocados para avaliar casos em que uma cura foi operada, rápida e incontestavelmente, apenas com o pedido a um candidato a santo. É assim: o sujeito está morre, não morre. Caixão comprado, tudo arranjado. Doença gravíssima, chance zero de cura. Aí alguém se pega com um aspirante à auréola dourada em volta da cabeça, consegue o milagre, conta a história e começa a girar a máquina vaticana que produz bem-aventurados, beatos e santos. Mas tudo começa com o que se chama de “fumaça de santidade”, uma espécie de “cheirinho” de santo no ar, para chegar à certeza de que, onde há fumaça, há fogo.
Quando a pessoa é oficialmente aceita no vestibular da santidade, com a Igreja reconhecendo virtudes teologais – fé, esperança e caridade – é nomeado um postulador que, como o próprio nome sugere, vai postular pela causa. Esse profissional, sem registro no mercado, porque trabalha apenas por amor, vai se dedicar, prioritariamente, à tarefa de confirmar a santidade de seu candidato. Recolhe depoimentos, junta provas, fatos concretos que convençam a igreja de que o camarada, ou a camarada, são dignos de sentar na mesma fila, por exemplo, onde São Pedro possui lugar cativo.
Se a papelada estiver OK e o nome do suplicante não aparecer no Serasa do céu, pode ser considerado servo de Deus. Confirmado o primeiro milagre, sobe um degrauzinho e vira Beato. Hoje, a fila de Beatos é capaz de encher a praça São Pedro. Para a Igreja reconhecer um milagre, um milagrezinho de nada, o sujeito tem que ter muito prestígio com o Altíssimo. Pede, intercede, Deus atende e ele leva o mérito. Caso a merecendência prossiga, seja atendido um segundo favor, ganha mais pontos e o Vaticano faz mais um santo. O processo é caro, demorado e exige paciência. Alguns se arrastam por séculos ou jamais são concluídos. Ir a Roma não é barato, assim como sair coletando provas de milagres não é brincadeira. Na estrutura da Santa Sé existe uma espécie de ministério chamado de Congregação para a Causa dos Santos. É lá que a massa cresce ou murcha de vez. A Igreja não brinca em serviço e nomeia um “advogado do diabo” para questionar, desmoralizar, desacreditar tudo que for apresentado como prova de que o candidato possui méritos. É melhor um aspirante ser desmascarado internamente, do que depois de canonizado.
Após ter a vida revirada do avesso, o autor do suposto milagre é colocado sob os olhos da ciência. Se médicos não-católicos, gente desprovida de fé, reconhecerem que uma cura aconteceu da noite para a dia, por exemplo; que o doente não tinha nenhuma condição de acordar vivo e amanheceu disposto, pronto até para brincar um carnaval; que nenhum remédio mais poderia ajudar na recuperação, aí não tem discussão. Foi milagre. O pretendente à santidade que conseguir subir dois degraus vai ganhar festa em São Pedro e o Papa dirá ao mundo que outro santo foi aceito no céu. A festa, na grande praça renascentista e barroca, arrasta multidões. A fachada da basílica é enfeitada com baneres gigantescos onde aparece a imagem dos novos membros de um clube formado apenas por gente do bem, sempre pronta a ajudar os daqui de baixo.
Claro que todo esse protocolo se dá no plano terreno, no teatro dos homens, porque, no plano espiritual, as práticas devem ser outras. Mas, como tudo deve acontecer do mesmo modo, assim na Terra e no Céu, creio – e creio de verdade – que um homem feito santo terá o mesmo status lá em cima.
Escolhi acreditar nisso tudo, porque optei por viver no círculo do sagrado ligado à religião católica. Se é assim, ou se não é, não me cabe discutir. Embora possua liberdade para pensar e questionar, não inventei uma religião para ser minha. No passado, baguncei minha cabeça, tentando ser agradável ao meu pai, que era espírita kardecista, pregador, doutinador, evangelizador, sábio na doutrina que abraçou, e também andei nessa seara, mas não me encontrei. Meu destino era outro.
Os espíritas são pessoas de boa vontade, decentes, honestas em sua fé, extremamente caridosas, disponíveis para o auxílio dos mais pobres, estudiosas, respeitam a Igreja católica e aquilo em que acreditamos, dignas do meu respeito. Uma vez, um espírita me disse: você seria um grande trabalhador da nossa causa. Eu agradeci e retribuí com outra verdade: e você seria um católico exemplar. Um dia, nos encontraremos no mesmo campo e seremos um só rebanho conduzido por um único Pastor.
Tenho imensa admiração e profundo apreço pelo panteão africano, porque ele chegou ao Brasil da forma mais cruel possível e aqui recebeu acolhimento integral. As igrejas irmãs agem no silêncio e não vivem atrás de fiéis, oferecendo milagrinhos ou lencinho poderoso. Os judeus preservam seu espaço e não fazem questão de números. Vivem uma verdade anterior à nossa com uma dignidade rara. Os orientais preservam sua fé na meditação e no recolhimento. Só não aceito embusteiros, desses que compram horários ociosos em canais de televisão e acham que, berrando, são capazes de ditar ordens a Deus. Ressalto que não que não devem ser confundidos com evangélicos de valor ou protestantes históricos, pessoas diferenciadas no trato da fé. Homens e mulheres de Deus, não do mercado financeiro.
Depois de muito penar pelos desertos da dúvida e dos questionamentos, me converti ao catolicismo. A convivência com pessoas de outros credos me faz muito bem, me estimula a aceitação do que é diferente e a pensar em outras possibilidades de crer, sem que isso me afaste de minha linha. Se dez amigos de religiões diferentes podem sentar à mesma mesa de um restaurante, cada um pedindo seu prato e compartilharem da alegria da unidade, por que seria diferente com a harmonia entre os credos?
No mês dos três santos populares e associados às festas sob bandeirinhas, com direito à fogueira e à boa mesa – Antônio, João e Pedro – além de Marçal, um pouco menos conhecido, é bom refletir sobre a santidade, um estado cada vez mais próximo de todos nós, que dispensa o diploma da Santa Sé e ajuda a transformar o mundo, através da bondade e de gestos concretos de amor desinteressado.

O exemplo mais recente de santo sem certificação é o padre Bruno Sechi, um homem que viveu sua humanidade, sem aspirar a ser santo, mas sendo. Criaturas como ele são os grandes santos do século XXI.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
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