Vidas negras importam

Simone Furquim Guimarães

Os últimos acontecimentos nos conclamam a fazer uma leitura bíblica na ótica da negritude.

A negritude é um movimento que tem como objetivo a recuperação da identidade negra, reconhecendo-a como sujeito de uma história e de uma civilização que lhe foram negadas e que precisa recuperar.

Para isso, é preciso reconhecer que a Bíblia muitas vezes foi, e ainda é, instrumento de opressão do povo negro, na medida em que sua leitura, a partir do ponto de vista patriarcalista e europeu, logo branco, justificou a condenação à morte de um número incontável de pessoas negras por meio da escravidão.

Não significa com isso que vamos inverter os valores dentro da teologia oriunda da Europa. A intenção de tal leitura e visão é de criticar a forma como foi nos ensinada sobre o povo negro, dar voz e vez à sua história e desconstruir os preconceitos culturais e religiosos.

Começamos por entender que boa parte da história bíblica é localizada geograficamente numa região onde situa o povo negro: falamos, sobretudo, do Egito, lugar onde tivemos grandes momentos de experiências do povo de Israel, onde José, Maria e Jesus foram acolhidos quando Herodes perseguia o primogênito.

No capítulo 2, do Evangelho de Mateus, temos o relato da visita dos magos do oriente. Os Evangelhos Apócrifos nos informa que um deles é Belchior, e que ele é negro. Temos a Boa Notícia de que os povos negros fizeram parte da formação de Jesus e participaram de seu nascimento e de sua infância.

Mas, além da tarefa de pinçar personagens negras nos textos, a proposta da Leitura bíblica na perspectiva da negritude é de buscar a Boa Nova para todos/as os negros e negras que sentem na pele a INJUSTIÇA.

Vamos ao texto bíblico perguntando também pelas pessoas e pelos grupos marginalizados, silenciados, individualizados, com suas histórias e suas marcas. Pois por trás do texto bíblico, evidenciamos histórias de pessoas. Por isso, devemos dialogar com elas, a partir das experiências vitais, cotidianas que elas guardam.

Por exemplo, no tempo de Jesus, havia muitas leis que separavam as pessoas. As leis da pureza determinavam quem estava mais próximo de Deus e quem estava mais distante. Embora não faça parte da nossa cultura o sistema do puro e do impuro, ainda há muitas barreiras e preconceitos que separam e dividem as pessoas nos diversos ambientes sociais, sobretudo se possui a pele negra.

Devemos entender acima de tudo que a acolhida a outros povos e etnias resgata o universalismo ensinado por Jesus e vivido por São Paulo nas cartas aos Gálatas 3, 23-29.

A violência provocada pelo racismo contra George Floyd, nos EUA, contra o menino João Pedro, aqui no Brasil, e tantos outros/as que acontecem todos os dias, nos impele a uma postura de reflexão e de indignação, bem como nos impele a sermos uma Boa Notícia para nossos irmãos negros e negras, estimulando em todo o país à tomada de consciência de cidadãs/ãos, ao empoderamento, à desconstrução de uma cultura embranquecida e de racismo presente nas estruturas de poder e econômico.

Devemos continuar gritando: “Vidas negras importam!!”.


Simone Furquim Guimarães é mestre em Teologia na linha bíblica. Tem experiência na área de Leitura Popular da Bíblia no Centro de Estudos Bíblicos (CEBI/Planalto Central).


Esta reflexão bíblica foi originalmente apresentada no Programa de Justiça e Paz, produzido pela Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, que vai ao ar todo sábado, às 11:00, na Rádio Nova Aliança.

Desde outubro de 2020, também disponível no podcast Ignatiana.

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

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