O limite da bagagem é uma mochila
Diário de um desespero – ou quase – LXXIX
João Carlos Pereira
No tempo em que as companhias aéreas permitiam, para vôos internacionais, duas malas de 32 quilos cada, elas até iam com sobra de peso. Eventualmente, a segunda ia quase vazia. Na volta, sessenta e quatro quilos eram insuficientes para tanta tralha que vinha de fora. Agora, com direito a apenas 23 quilos (será que chegaram a esse peso, invertendo os números?), todo mundo se contém na hora de comprar. Ou então, adquire uma segunda mala.
A verdade nisso tudo é que a vida vai se ajustando o que se lhe oferece. Exatamente como agora, quando, quem pode, fica em casa, se protegendo da morte ou da falta de leitos em UTIs. No fim das contas – fim mesmo – tudo que temos de nosso, de verdade, o corpo frio, já na condição de cadáver, precisa apenas de um caixão.

Acostumado ao drama das malas, sempre sonhei em me livrar delas e sair pelo mundo com o mínimo possível. Uma única vez tive essa chance e meti o pé na estrada com uma mochila nas costas. Embora fosse uma viagem longa, ficaria penas dois dias longe de casa. A questão é que eu estaria sozinho, num país cuja língua não domino bem e tudo que possuía era minha mochila, com umas pecinhas de roupa, nécessaire básica, os remédios para o coração, computador, celular e dois livros. Nada além disso.
Na praça florida, centro da cidade de Ortisei, na Itália, cercada de montanhas, cenário de filme romântico, eu era apenas o que sempre desejei ser: anônima criatura, um homem com sua mochila, seu silêncio, os olhos encantados com a paisagem, nenhum passado, nenhum futuro. Era apenas eu. Sem nome, sobrenome, profissão. Só muito depois me dei conta de que, se o anjo da morte resolvesse me arrebatar, nem meu endereço havia disponível. Saberiam que era brasileiro pela indicação do passaporte, mas o cadáver do desconhecido João Carlos Pereira ficaria resfriado num instituo médico legal qualquer, enquanto a família não o reclamasse. Até nisso a morte é maravilhosa, porque nos iguala a todos. Ninguém fica enfeitadinho, esperando a parentada. Todos ganham a palidez dos defuntos e a imobilidade eterna dos finados. Deus é justo.
Como não era minha hora, retornei a salvo para Portugal, trazendo na mochila apenas indicações turísticas e preciosas anotações para a pesquisa que preciso concluir. Na viagem de volta ao Brasil, minhas malas continham roupas que sequer usei e acionaram o sinal de que ainda preciso aprender mais sobre desapego. Para que tanta roupa? Para que tanta coisa, meu Deus, quando aquilo de que mais preciso cabe numa mochila?
Poucas lições são mais verdadeiras do que o ditado “mortalha não tem bolso; caixão não tem gaveta”. Na hora fatal, quando o Senhor passa a régua e apita, avisando que o tempo acabou, do que adiantam as posses? A gente vai de qualquer maneira e não há âncora que, amarrada ao pé, prenda o vivente a este mundo.
O ensinamento da mochila é precioso. Às vezes, ela é até grande demais para o pouco de que realmente necessitamos, mas insistimos em querer as duas malas de 32 quilos. Com a nova lei, até dá para levar mais, porém paga-se pelo excesso. E não é pouco. Na vida real, fora dos aeroportos, é igualzinho.
O tempo vai ensinando que o menos é cada vez mais do que aquilo de que necessitamos. Quando escrevo para jornal, sei que possuo limites. No Liberal são 3.000 toques. Na Voz de Nazaré, 1.800. Antes das mudanças gráficas nos dois veículos, os espaços eram maiores. Quem produz para veículos impressos, precisa ser disciplinado. O mesmo serve para televisão. Com espaço reduzido, eu continuo a dizer o que penso, apenas com menos palavras. Se passar, não sai. Simples assim.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
Série Diário de um desespero – ou quase
Todas as crônicas publicadas no Ignatiana
Imagem: Ione Saldanha — Bambus, 1988, 1996
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