O rei nu, o homem que sabia javanês e a pilantragem em nome de Deus
João Carlos Pereira
Diário de um desespero – ou quase – LXIII
Hans Christian Anderson, um escritor dinamarquês do século XIX, povoou minha infância de sonhos e de boas lembranças. De suas histórias, uma das que mais gosto foi traduzida para o português com o título de “A roupa nova do rei”, que ele recontou, após haver lido o “Livro dos Exemplos”, também chamado de “O Conde Lucanor”, uma coletânea medieval de 55 contos, do século XIV, também chupados de outras fontes, como Esopo, narrativas persas, recolhidas por Juan Manuel, o príncipe de Vilhena. Era um copia e cola de matar de inveja a produção acadêmica, em todos os níveis, nos tempos da internet.
Anderson dá sua versão, altera cenários e realidades políticas para dar ênfase ao combate à vaidade e à falsidade intelectual, coisa muito comum e largamente apreciada pela chamada intelectualidade de província ou mesmo por aqueles que, tendo um só olho, se transformam em faróis da sabedoria. As universidades criaram verdadeiras ninhadas de sábios com esse DNA. Mas não só elas. Onde brota um espertalhão, o gado vai atrás. Que o diga o maravilhoso Afonso Henrique de Lima Barreto, conhecido, quando muito, apenas pelos dois últimos nomes. Lima Barreto foi um marco da literatura brasileira, autor de romances, novelas e crônicas, entre os quais destaco “o homem que sabia javanês”. Por possui dois olhos, numa terra de cegos, a personagem principal, o cínico Castelo, foi na vida o que quis e bem entendeu.
Esse conto é um exemplo acabado da esperteza e da pose sobre a pobre e fina lâmina d´água, tingida de cultura, que cobre a ignorância. A personagem de Lima Barreto, que deu filhotes às pencas, enganava tão bem, que ganhou o posto de embaixador do Brasil em Havana. Ia a congressos de linguística e enrolava que era uma maravilha. Fazia publicar nos jornais, sem a necessidade de assessoria de imprensa, textos elogiosos a seu respeito e assim ia angariando prestígio. Seu deboche era tamanho, que, ao ser perguntado sobre o que realmente gostaria de ser, não deixou por menos: “bacteriologista eminente”. Não lhe bastava ser bacteriologista. Tinha ser se eminente. Nessa pandemia, já teria descoberto a cura para o vírus e seria nomeado Ministro da Saúde. Alguém duvida?
Pelas mãos de Anderson surgiu um aparentado da personagem de Lima Barreto. Tratava-se um embusteiro de primeira linha que, fugido de um reino por causa de suas trapalhadas, apresentou-se em outro reino como alfaiate de mão cheia. Posou de inventor de um tecido invisível, que, transformado na mais fina veste, só poderia ser vista por pessoas inteligentes. Na mesma hora, o homem virou ídolo da caboclada e sua fama chegou aos ouvidos do rei, outra besta-quadrada, que logo desejou conhecê-lo.
O alfaiate recebeu arcas e mais arcas de finos tecidos, fios de ouro e muito dinheiro para preparar a mais bela indumentária, nunca antes vista na história daquele reino ou da Terra inteira. O homem costurava com a janela aberta, para todos que passassem o vissem trabalhando. Enfiava agulhas, ajustava emendas, fazia acabamentos, bordados, tudo com mais finas rendas e pesadas pedrarias que o rei enviara e apenas os inteligentes conseguiriam ver. Nem Carlitos, o adorável vagabundo, na falta de palavras, faria gestos mais perfeitos nos seus filmes sem palavras e ricos em sinais.
Esgotado o prazo, o rei decidiu desfilar pela cidade, com a roupa esplendorosa. O alfaiate, abusando da bondade real, ainda pediu mais alguns dias para finalizar a encomenda. Na data combinada, chegou ao palácio e, sem jamais ter realizado uma prova, cobriu o rei com um modelo exato para suas medidas. O soberano e sua corte de bajuladores estavam em-can-ta-dos com a perfeição. A vaidade vazava pelos poros reais e o rei exibia sua enorme barriga diante de nobres e plebeus. Todos muito inteligentes, é claro.
O reino aplaudia freneticamente a elegância – afinal, não eram inteligentes? – até que uma criança berrou que o soberano estava nu. A princípio, encolheu-se e cobriu sua vergonha real. Mas no minuto seguinte se recompôs e os inteligentinhos, como diz o Luiz Felipe Pondé, o agora queridinho da filosofia e homem de vasto saber, ficaram confusos, mas voltaram a aplaudir a obra de arte. Moral – ou uma das morais – da história: quem nasceu para bajulador, morre de quatro.

Não gastei tanto tempo contando essas histórias, se não fosse por uma coisa absolutamente igual, que acabei de ver nas redes sociais. Um bandido, se fazendo passar por pastor, encontrou no terreno fértil da ignorância de um rebanho imbecilizado e carente, mistura ideal para enganar os bestas e faturar. Ele apresentava uma máscara invisível que, além de proteger os crentes da covid-19, ainda possuía efeitos curativos. No vídeo, tirava do bolso a máscara invisível , ajustava o elástico às orelhas, puxava-a um pouco para baixo e pronto. Estava protegido de qualquer doença. Até da aids. A camisinha invisível deve ter sido patenteada por ele. Isso não sou eu quem está dizendo. Foi o próprio.
Um sujeito desses deveria ser preso e jamais colocado em liberdade. Mas se fosse o único a iludir a fé do povo, numa hora tão difícil, o problema do charlatanismo estaria resolvido. A questão é que não param de surgir produtos ungidos pelo próprio Deus e até apareceu uma semente milagrosa, vendida a mil reais a unidade, que, ao germinar, matará o corona vírus no chute.
O Brasil acredita em qualquer um que apareça vendendo facilidades, riqueza, prosperidade, saúde, terrenos na lua, cadeira na primeira do céu, ao lado dos anjos que contemplam eternamente a face do Senhor. Enganar a fé do povo é crime e a isso se chama charlatanismo. Mas o povo está de tal modo habituado, hipnotizado, fanatizado por essa gente que, se um dia Jesus aparecer e se apresentar como o Filho de Deus, ainda vai ter quem duvide que é Ele mesmo e o tratará com um demônio, que veio confundir.
Foi assim na primeira vinda. Na segunda não será tão diferente. Mudar é difícil e requer tempo. Ainda bem que Deus tem muita paciência e criou a eternidade para ver se consegue mudar certas mentalidades. Para não dizerem que Ele possui seus protegidos, ofereceu o tempo interminável para todos.
Eu, de minha parte, adorei.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Ismael Nery — Estátuas vivas, 1931.
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