Jesus: “Eu não deixarei vocês órfãos”

Cyril Suresh, SJ

Duas semanas antes de Pentecostes, o sexto domingo da Páscoa apresenta hoje a liturgia da Palavra com um teor trinitário de comunhão, de oração e de solidariedade sem fronteira. Na quinta-feira passada (14 de maio de 2020), junto aos fiéis-crentes de todas as religiões, o papa Francisco e o líder muçulmano Ahmed al-Tayeb oraram a Deus que ajude a humanidade a superar a pandemia do coronavírus (covid-19), que causou mais de 300 mil mortes e infectou mais de 4 milhões de pessoas até hoje. O povo dos diferentes continentes e culturas se uniram espiritualmente em um dia de oração e jejum e obras de caridade pelo fim desta pandemia. A união faz a força curadora!

No tempo difícil como hoje, a meditação da Palavra sutilmente traz uma luz significativa para a conversão e a proteção da humanidade. O caminho de diálogo nem sempre é fácil. Porém, um olhar sincronizador de diálogo recíproco e recorrente dentro das leituras litúrgicas lentamente revelaria para nós um aspecto tridimensional ou tripartido mais amplo, capacitando, segundo Pedro, a nossa disposição de dar explicações sobre a esperança que temos (cf. 1Pd 3,15). O Pai-Filho-Espírito Santo, por exemplo, é um trio dialogante da fé fundamental do cristianismo. Tem vários outros!    

Uma narrativa emocionante da Bíblia, como despedida de Jesus (Jo 14,1-31), tem seu imperativo no estilo cohortativo, isto é, um verbo modal enunciando um forte desejo do narrador como mandamento, intenção e resolução, assim anunciando sua vontade de ação, numa linguagem inclusiva, interpessoal e interdependente. O narrador se inclui na primeira pessoa do singular/plural, comunicando um desejo especial por si ou por seus ouvintes ao mesmo tempo. No singular, a cohortativa revela da determinação pessoal, por exemplo: “Eu não deixarei vocês órfãos” (Jo 14,18). No plural, a cohortativa fala de uma intensão comunitária, por exemplo: “nós viremos e faremos a nossa morada” (Jo 14,23).

Na tradição semítica, a função deste apelo conhortativo é usada para encorajar, sustentar e exortar os ouvintes-leitores a fim de despertar dentro deles uma responsabilidade coletiva, uma comunhão harmoniosa, uma interdependência reciproca, uma inseparabilidade permanente, uma solidariedade universal, etc. Com essa sabedoria coletiva, a crise de fé, o conflito sociocultural, a guerra politico-religiosa, o problema da degradação no ecossistema ambiental devem ser resolvidos. Pois, “Deus tem mais para dar do que o diabo para tirar”.

O estilo cohortativo, numa forma brilhante, está até no relato da criação. Por exemplo, Deus disse: “Façamos um ser humano, à nossa imagem e segundo nossa semelhança” (Gn 1,26). Aqui, o uso da linguagem plural, inclusiva, performativa, participativa e coletiva possui o impulso de diálogo evolutivo na narração. Semelhantemente, o termo grego pericoresis (περιχώρησις) descreve uma mútua interpenetração, uma processão vital de dança circular (circumincessio), de comunhão essencial, de doação constante, etc. A tradição da Igreja apropriou este termo para entender um pouco o mistério de Deus vivo e triúno. Segundo o princípio cristão, Deus, que é uno e trino, está numa comunicação perpetua entre si e com o todo universo (inclusive a humanidade e o mundo). Deus amou o mundo tanto que Ele enviou o seu Filho Único (Jesus), para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna (Jo 3,16). Jesus ergueu os olhos ao céu e orou: “Pai, chegou a hora; Assim como tu me enviaste ao mundo, eu também os enviei (discípulos) ao mundo; Consagra-os com a verdade” (Jo 17,1.17.18). Meu Pai dará a vocês o Paráclito (outro Advogado)- Espírito Santo, para que permaneça com vocês para sempre (Jo 14,16.26). A inter-relação íntima, o entendimento sublime, a coabitação mutual (Jo 14, 10.11.20.23.26), a comunhão dinâmica e recíproca (Jo 14,20; 1Jo4,13) e a compenetração divina entre Pai-Filho-Espírito Santo e sua morada dentro do discípulo obediente (Jo 14,23-26) são abundantes na narrativa joanina (Jo 13-17). Nesta ótica, a vigor marcante do movimento cohortativo e pericorético são evidentes.

A igreja com alegria, sem fronteira, vai encontrando o crescimento tanto da Palavra de Deus quanto do povo de Deus (At 6,7; 9,31; 12,24) pela efusão do Espírito Santo, pela imposição das mãos dos apóstolos e pela expansão dos catecúmenos. A igreja vai geograficamente ampliando numa força centrífuga e missionária (indo de Jerusalém para Samaria, Síria, Etiópia… At 1,8) pela pregação dos diáconos (Filipe) e dos discípulos (Pedro, Paulo, João…), ao mesmo tempo, ela vai vitalmente consolidando numa força centrípeta e carismática (vindo a Jerusalém, a Roma…) pela confirmação episcopal dos apóstolos. A liturgia da Igreja alimentava o povo pelo sacramento da iniciação Cristã, um trio: batismo, confirmação, eucaristia. E o povo cristão, por sua vez, foi amadurecendo num trio: comunhão (koinonia, κοινωνία), serviço (diaconia, διακονία), testemunho (martiria, μαρτυρία). Nas maiorias das vezes, pela vontade de Deus, a perseverança do povo foi tanto que o seu sofrimento por fazer bem não foi pouco (cf. 1Pd 3,17).

O Paráclito (Jo 14,16.26) vai aniquilando o estado lamentável de ser órfãos – os abandonados, os alienados, os isolados sem paternidade, solidariedade e hospitalidade. O Advogado – Espírito da Verdade Santa – Sopro Divino (Gn1,2; Jo 20,22; At 2,2), vento forte e vivificador, vai auxiliar (facilitando a morada de Deus no seu povo, Jo 14,17) e vai ensinar (lembrando tudo de Deus para o seu povo Jo 14,26). Assim, o Espírito Santo procede do Pai-Criador e do Filho-Redentor, e habita nos discípulos (Jo 14,17) sempre trabalhando pela santificação deles. Não têm divisões nem conflitos entre si dentro do mistério da Santíssima Trindade; aqui não é difícil a perceber um trio: integridade, reciprocidade, circularidade. No meio da diversidade multicultural, a mesma dinâmica trinitária conduz o povo no caminho da unidade e da paz: um só Deus (Pai), um só Espírito (Santo), um só Senhor (Jesus), um só Corpo (Igreja), uma só fé, um só batismo (cf. Ef 4,3-5). Adentrando neste caminho, pela ajuda do Paráclito Divino, vale apena relembrar o significado correto do mandamento e do amor na tradição bíblica e a da Igreja.

  1. Na Bíblia, o termo “mandamento” foi entendido primeiramente como Torá (תורה| ἐντολή) que tem uma riqueza de significado múltiplo, assim como, Palavra, sabedoria, orientação, acompanhamento, aliança, instrução, ensinamento, lei, caminho, etc. Tal compreensão profunda e amplificadora está bem longe do fundamentalismo dogmatista e do tradicionalismo legalista. Para o evangelista são João, o mandamento é sinônimo de “verdade e graça” (Jo 1,17) e de “palavra” (Jo 14,15.23); é um gesto concreto e autentico do amor obediente do discípulo para com seu mestre Jesus (Jo 14, 15.21.23.24). Em fim, o discipulado de Jesus está sendo convalidado pela prática do mandamento de amor mútuo (Jo 13,34-35; 15,12-14).
  2. Na Bíblia, o termo “amor” derivado da raiz semítica hêset|ágape (חסד|ἀγάπη) contém uma série de significados como compaixão, fidelidade, piedade, lealdade, aliança, fraternidade, caridade, cuidado recíproco, testemunho, doação, altruísmo, corresponsabilidade (Jo 14,15-21.31;1Jo2,3-6), etc. Tal compreensão intensa radicalmente rompe com a noção erronia do erotismo hedonista e do sentimentalismo sensacionalista sobre amor-ágape. Na luz da Bíblia, Deus é amor (1Jo 4,8.16), Deus é Verdade e Espírito (Jo 4,23-24).

Raimon Panikkar (1918-2010), um teólogo católico, sacerdote e cientista, é precursor da intuição mística (não-dualista) constituída por um trio: o mundo cosmos -Deus – seres humanos, cujo neologismo é Cosmoteandrismo, isto é, não somente cultivar um olhar teocêntrico, antropocêntrico, e cosmocêntrico, mas também simultaneamente construir o belo conjunto da convivência cosmoteândrica. Tal visão consolida-se no sagrado que nasce do mandamento de amor (diálogo, respeito, cuidado) pelo mundo, pelas culturas, pelos saberes, pelas religiões, pelos seres vivos e pela saúde (salvação). Através deste ponderamento sensível da Palavra, é lúcido a observar que o Deus revelado em Bíblia, Triúno Divino, continua preocupando apaixonadamente com sua criação pelo Seu agir cohortativo-pericorético-cosmoteândrico. Esse Deus está ininterruptamente criando (o mundo) e amparando todos por meio de seu povo enviado na missão da solidariedade. Com salmista podemos aclamar: Vinde ver todas as obras do Senhor (Deus) e seus prodígios estupendos entre o seu povo! Deus não rejeita a oração e o clamor do seu povo e nunca afastou longe do seu amor salvador (Sl 65,5.20).


17 de maio de 2020 — 6° domingo do Tempo Pascal
Atos 8,5-8.14-17 | Salmo – 66(65) | 1 Pedro 3,15-18 | João 14,15-21

Nascido na Índia, padre Cyril Suresh Periyasamy cresceu em uma família de tradição religiosa hinduísta. Na adolescência, ao conhecer a história de Jesus Cristo, converteu-se ao Catolicismo, sendo batizado aos 17 anos. Durante seus estudos, em uma faculdade jesuíta, ele tomou contato com a espiritualidade inaciana e decidiu ingressar na Companhia de Jesus. [saiba mais]

Imagem: Rembrandt (1606-1669) — Cabeça de Cristo,c. 1648/1656 — Philadelphia Museum of Art

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

1 comentário Deixe um comentário

  1. Conheci o Padre Cyril em 2009, enquanto morava em Chennai, Índia. Naquela época, ele não falava mais que algumas frases em português, mas já sabia que sua missão de vida envolvia o Brasil.
    Que surpresa agradável ler sua resenha. Sua capacidade argumentativa, clareza de ideias e riqueza na construção dos parágrafos, permite ao leitor, mergulhar no texto e se envolver na complexidade do assunto.
    Bravo!

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