Planos para o primeiro dia de liberdade
Diário de um desespero – ou quase – LIV
João Carlos Pereira
Tenho visto, nas redes sociais, muitas pessoas dizendo qual o primeiro lugar para onde pretendem ir, assim que for possível sair de casa, sem rumo, sem lenço nem documento, ou pavor de ser parado pelo guarda e mandado de volta para casa, com uma multa pregada nas costas. A maioria fala em igreja, o que é muito bom, porque, como diz o Almir Kozlovski, gratidão é uma virtude rara, e, por ser rara, pouca gente tem.
Eu também irei à igreja assim que permitirem, numa hora que, espero, não haja muita gente, tipo depois do almoço, mas não pegarei o carro, nem que esteja chovendo. Vou a pé, com guarda-chuva ou me molhando, para poder reencontrar a paisagem humana que sumiu dos meus olhos há dois meses e na qual penso, com preocupação.
O guardador de carro da frente do Museu não tem um pé, coitado. Passa o dia lá, com uma banda de sandália num e o que lhe restou da amputação, ardendo no asfalto. Esse tempo, assim espero, vai reduzir o abuso que tenho de flanelinhas, sobretudo dos que nunca estão quando a gente estaciona e só aparecem na hora de ir embora. A esses continuarei avesso. Mas os que dão duro, debaixo de sol ou de chuva, batem ponto num quarteirão que conseguem sabe Deus como, ficam atentos ao carro que não lhes pertence, ajudam a estacionar e a sair, porque outra forma de ganhar a vida não têm, merecerão mais respeito e, sempre que possível, mais generosidade.

Um “flanela” honesto passa o dia na rua, não tem plano de saúde, nem emprego. Se tivesse, não estaria fazendo esse trabalho tão desvalorizado. Ninguém pergunta se já almoçou ou se terá o que comer à noite. Provavelmente deixa família em casa e só a alimenta com o que consegue a cada dia. Se expõe a todo tipo de situações e humilhações, não tem onde lavar o rosto ou fazer suas necessidades. Depende de todos para tudo. Uma vez, encontrei com um senhor de idade já avançada, que reparava carros perto da Catedral. Depois que me conseguiu uma vaga, disse: “vou abrir porque é para o senhor. É chato… têm uns rapazes que passam a noite na farra e depois jogam uma moeda de dez centavos para a gente, debochando do nosso cansaço”.
Vida de “flanelinha” não é fácil. Tirando uns espertalhões que atuam no comércio, ou em noite de festa, na sede AP, quando surgem com um papel indicando que o trabalho deles custa 20 reais, a maioria é gente boa e esforçada. O pior de todos os casos eu vi nas proximidades do Teatro Municipal, no Rio. Mal o senhor estacionou, veio o “flanela” (que era tudo, menos guardador de carros) exigindo 50 reais pela vaga. O homem quase morreu duas vezes. A primeira, por causa do valor. A segunda, porque o bandido – sim, era um bandido, não um trabalhador – avisou na hora: “pague logo, porque eu já vou embora”. Me deu um ódio tão grande, sobretudo porque a vítima pagou, sabendo que, se não atendesse, ao voltar, talvez o veículo nem estivesse mais lá. No fim das contas, pensando bem, até que não saiu caro.
Uma vez, entrevistei um rapaz que vigiava carros perto do Colégio Moderno para a coluna que mantive, por muitos anos, em “O Liberal”, chamada “Nos Bastidores”. Esse menino até já morreu, com problemas terríveis nos rins, sem dinheiro para se tratar. Todo mundo gostava dele, mas ninguém sabia seu nome ou ao menos onde poderia ser encontrado. Não houve como ajudá-lo. Foi ele quem me fez compreender melhor a vida dessas criaturas que, agora, devem estar sofrendo mais do que nunca, com tanta vaga sobrando para estacionar.
No meu caminho também está uma senhorinha, que venda café e cigarro a retalho. Sempre que passava por ela, me dava um tchauzinho. Um dia me abordou: “o senhor, que é da Liberal, me ajude. Meu filho sumiu há muitos anos. Eu preciso da sua ajuda”. Na mesma hora, liguei para a TV e acertei com a produção do JL1 o dia e a hora em que ela deveria ir à Praça da República para participar do quadro “Desaparecidos”, que ajudou tanta gente a encontrar entes queridos. Ela foi, pobrezinha, cheia de esperanças, mas não conseguiu achar o filho. Há algum tempo passei por ela e ganhei o mesmo aceno de sempre. “Achou o filho?” “Que nada, mas não perdi a esperança”, disse, com o cabelo mais loiro que nunca e um sorriso triste. Admiro quem tem esse tipo de confiança no improvável e não desiste, mesmo quando a causa é difícil ou perdida.
No mesmo rumo, acho uma porção de conhecidos, gente que vejo e logo depois esqueço, mas que me saúda com alegria, como verdureiro, de quem, às vezes, compro banana ou pinha; o rapaz que vende patchouli e algumas pessoas que, como eu, fazem caminhada matinal.
Na volta, depois de uma boa conversa com Nossa Senhora, de preferência após haver comungado, vou entrar no Colégio Gentil para abraçar as minhas freiras queridas, levar alicates para amolar, nas banquinhas que ficam na Alcindo Cacela e rever a amiga Eliane, na gráfica Sagrada Família, para tratar de publicação do livro com as crônicas nascidas na pandemia e outras mais antigas. Só então voltarei para casa, pegarei o carro e irei ao supermercado onde conheço muita gente e sou recebido com sorrisos até pela dona do estabelecimento.
Ninguém pense que estou desesperado, doido para sair, porque essa não é uma verdade completa. Claro que desejo tirar a tornozeleira eletrônica e ganhar mundo. O meu mundo, que inclui os encontros regulares com os amigos do antiquário, o Ver-o-Peso, a Igreja em horas improváveis, a livraria, exposições de arte, aula de francês, na Aliança, minhas academias (a de ginástica e a de Letras), o supermercado e tudo que posso fazer sem ser vigiado ou controlado. Meu mundo é vasto, largo, difuso e sem limites. Literalmente.
Essa descrição contempla o universo exterior e alcança até as estrelas, para as quais olho com inexplicável saudade. Mas o mundo interno é bem maior, mais interessante e com caminhos mais conhecidos. Meu mundo sou eu e minhas enormes contradições; muitas faltas e incríveis perdões; sonhos possíveis, que ainda podem ser elevados à condição de projetos de vida. Meu mundo, não é egoísmo, tampouco egocentrismo, sou eu.
Só espero que haja vida para conhecê-lo melhor e que o corona não ouse abreviá-la. É bom até que seja prevenido: se eu morrer, ele morre comigo.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Roberto Magalhães — Carro vermelho, 1967.
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