Quem matou dona Iolanda? Verdades e versões.

Diário de um desespero – ou quase – XLIV

João Carlos Pereira

Antes de propriamente começar a contar a história, preciso dar uma explicação. O texto foi escrito na véspera da morte do Dr. Aurélio do Carmo e contém uma citação ao seu nome e ao da esposa, Mariete do Carmo. Meu propósito era, além de recorrer à sua excelente memória, fazê-lo rir um pouco e destacar o amor que Mariete sentia pelo seu “Lilito”. Mas não houve tempo. No dia em que a crônica seria publicada, meu amigo, que morreu dormindo, placidamente, já era saudade.

Esta 44ª. crônica de um interminável isolamento, do qual o Dr. Aurélio se libertou, é mais uma homenagem a ele.


Mário Quintana, que volta e meia me socorre aqui, gostava de dizer que certas homenagens são perigosas, porque, quando o sujeito é lembrando com uma placa de bronze e depois se descobre que a homenagem foi imerecida, já será tarde demais. Um erro em bronze é para sempre, ensinava o poeta, no dia em que era inaugurada uma placa em sua honra, não sei em que cidade.

No Egito antigo, quando alguém se atrapalhava no texto, estava liquidado, porque os papiros ficaram para a eternidade ou a inscrição, feita na pedra, ainda permanece. Quando a besteira sai num livro, ou se prepara uma errata, que é a coisa mais feia do mundo, ou se espera a outra edição para ajeitar. No jornal, uma barrigada é curada com o prosaico “erramos” que, em geral, ninguém lê. Mas, na internet, uma coisa mal-contada não resiste por mais do que cinco minutos, porque o povo cai de pau e o autor fica levando paulada por dias, dias e dias. Graças a Deus não foi meu caso.

Mas ontem, depois que escrevi sobre a morte da famigerada dona Iolanda, nossa vizinha de porta, na rua João Diogo, mal postei a crônica e, de cara, duas questões foram apresentadas. A primeira: João Diogo, no nosso trecho, é Cidade Velha, conforme afirmei, ou ainda pertence ao Reduto? Hoje é Reduto, sem nenhuma dúvida. Na época, não sei. Cresci ouvindo que nossa casa era na Cidade Velha. Talvez fosse. Embora essa não seja a questão principal, é bastante pertinente.

A segunda poderia virar uma dúvida semelhante à célebre “quem matou Odete Roitman?”. No texto, deixei uma lacuna que poderia ser o gancho para outra história. Se a Claudinha, escrava branca da dona Iolanda, saía e voltava, como explicar sua ausência, no momento do crime? Para quem perdeu a crônica de ontem, vou voltar a fita.

Dona Iolanda era uma viúva, que ainda tinha os pés na escravidão. Mas isso não é desculpa para a crueldade. Minha bisavó nasceu na década de 60, do século XIX, algo como 1865, talvez, e cresceu vendo o sofrimento dos escravos. Nunca, porém, tratou negros como bicho ou promoveu diferenças baseadas na cor da pele. Como morreu com 90 e muitos, assistiu a essa página de nossa história ser virada, mas, infelizmente, não sepultada. Dona Iolanda vinha desse momento e a mãe dela, como disse, era tão aristocrática, que tocava violino, ao entardecer, na porta. Imagino as roupas, cheias de babados, rendas e saiões, absolutamente impróprias para o clima, mas última moda em Paris, da qual Belém era uma espécie de filial, nos trópicos. Naquela época, não havia Belém do Pará. Era Belém de Paris.

A mulher era a pessimidade em forma de gente, do tipo que não falava com pobre, não dava a mão a preto e não carregava embrulho, tal como na música “a banca do distinto”, escrita por Dolores Duran e lindamente interpretada pela Elis Regina. Dona Iolanda chegou ao mundo impregnada da maldade da casa grande e saiu dele como qualquer vivente: na horizontal e sua soberba se decompôs junto com o corpo. Juntando a natureza perversa à memória recente da escravidão, tratava a pobre Claudinha como uma escrava de segunda ordem.

Um dia, dona Iolanda apareceu morta. Na crônica, digo que um ladrão entrou na casa e acabou com ela. Quando deixou de aparecer na janela e ninguém mais viu a Claudinha, a vizinhança percebeu que havia algo errado. Um cheiro podre começou a exalar lá de dentro. A polícia arrombou a porta e encontrou tudo revirado, inclusive as vísceras da mulher. O ladrão que entrou lá e levou o que havia de valor – as joias, sobretudo – não quis deixar testemunhas. A mulher foi achada em avançado estado de decomposição.

Um amigo se apressou a comparar a criatura com uma bruxa da Disney, o que me fez ter piedade da nariguda e queixuda que envenenou a Branca de Neve com uma maçã, e a longilínea que induziu a Bela Adormecida a furar o dedinho no tear. O mesmo vale para Madame Min e Maga Patalógica, as mais folclóricas personagens de Patópolis e igualmente ruins. Ele também levantou a pergunta que me foi feita quase na mesma hora, pelo zap.

Uma amiga, que alcançou o mais alto patamar da magistratura, depois de haver sido juíza por muitos anos, tendo passado, antes, pela Polícia Federal, replicou o questionamento, usando o faro de ex-delegada: “e a Claudinha, por onde andava?”

Confesso que não havia pensado nisso. Não me preocupo muito com o destino das personagens, assim com um autor não deve levar tão a sério a crítica à sua obra. Eu escrevo e pronto. E a crônica é um espaço tão pequeno para grandes movimentações, que o “detalhe” quase passaria despercebido, não fosse a atenção de duas pessoas, pela qual (e às quais) muito agradeço.

A questão estava lançada e permitiria respostas variadas. Se eu quisesse me gabar, diria: fiz o que se chama de final aberto. Mentira. Não fiz nada. Aconteceu. A história tem várias saídas e eu deixo ao leitor a melhor interpretação.

A primeira opção ficaria nas mãos, literalmente, da Claudinha. Cansada de ser a burra-velha-tartaruga, resolveu que não iria vingar-se, apenas ajustar contas com a malvada e tacou-lhe a faca. Com a vilã morta, pegou o que quis e foi embora. Simples assim.

Opção dois: Claudia aproveitou a folga e sumiu no oco do mundo. Pegou o beco, como se diz. Na história real da menina que secou, numa sexta-feira Santa, porque levantou a vassoura para bater na mãe, a heregezinha pulou o muro do futuro jardim do padre Vieira, deve ter apanhado um barco na Feira do Açaí e evaporado para sempre. Amanhã eu conto esta história todinha, tal qual me foi narrada por D. Alberto Ramos, um arcebispo extraordinário, cuja biografia deveria ter sido escrita por Hélio Gueiros, que era evangélico, mas nutria por ele um respeito fora do comum. Prometo.

Outro final. Claudinha chegou à casa, depois de ter passado a tarde com seu namorado secreto, um anão que conheceu no circo e, por amor, permaneceu em Belém, quando as lonas foram levantadas. Talvez fosse o Circo Tihanny; quem sabe o Orlando Orfei, ou outro sem nenhum glamour, como os que eram montados na praça onde está morrendo, aos poucos, o Memorial do Magalhães Barata. Foi num desses que o Roberto Carlos – sim, o Rei, – cantava, quando vinha a Belém, trazido pelo falecido radialista e seu amigo Almir Silva. Claudinha achou o anão um tipo curioso. O anão se interessou pela corcunda da Claudinha e viveram um romance de picadeiro. Claudinha e seu anão resolveram fugir. Ela foi buscar suas coisinhas, e, quando viu a feitora morta, não se atreveu a entrar.

A última cena – gravada na tarde do mesmo dia do último capítulo de uma hipotética novela, cheia de emoções, com duas perguntas penduradas no pico da audiência: quem matou Salomão Ayala e quem matou Odete Roitman ?– reuniu dona Iolanda, Claudinha e o anão. Ao ver o estranho casal, ficou tão assustada, horrorizada, e se suicidou. Como em ações que só acontecem em novelas, o ladrão, vendo a porta aberta e encontrando a casa vazia, com uma mulher morta no meio da sala, no melhor estilo Bertoleza, a negra escrava que se matou, rasgando a barriga de leste a oeste, no romance “O Cortiço”, de Aluísio de Azevedo, achou que era seu dia de sorte e fez a limpa.

Deixo nas mãos de vossas excelências a solução para um crime que não chegou a abalar Belém, porque, naquela época, Belém era, por incrível e mais impossível que pareça, de um provincianismo parecido com o de hoje do qual jamais livrou e, provavelmente, nunca se livrará. Naquele momento, falava-se na Belém-Brasília, em Sartre, na corrida espacial e em Che Guevara, entre outros temas mais fascinantes do que um crime. O Governador talvez fosse Moura Carvalho. Aurélio do Carmo, quem sabe? Se Isaac Soares, o querido Tigre, ainda era vice-prefeito de Belém não recordo. O arcebispo, não tenho dúvida alguma, era D. Alberto Gaudêncio Ramos.

Tirando o Dr. Aurélio do Carmo, esse homem extraordinário, a quem a esposa, Mariete, trata, amorosamente, de Dr. Menino, não há mais ninguém para contar essa história, repor a verdade, desmenti-la todinha ou confirmá-la. Talvez Avertano Rocha, Ubiratan Aguiar, o desembargador Christo Alves, o Linomar Bahia e o Bernardino Santos tenham informações mais precisas. Vou assuntar. O Sebastião Godinho, que é pouquinha coisa mais velho do que eu, mas conhece esta cidade do direito e do avesso, haverá de se pronunciar. O saudoso Leonam Cruz – o pai – capaz que soubesse de tudo, assim como o Joaquim Antunes e o Édson Salame. E o Albertinho Bastos, que morava no coreto da Praça, se calhar, até viu a cena.

Eu, para me safar de qualquer encrenca, faço subir as letrinhas, como era costume nas novelas do passado, a informação de que se trata de uma obra de ficção e que toda e qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais terá sido mera coincidência. Até o nome das criaturas é capaz de ter sido alterado.

Ou não.

Belém 1º. de maio de 2020

João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Oswaldo Goeldi — Lugar do crime, s/d.

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