COP30 entre rios e contradições

Sônia Nascimento

Assisti a um vídeo, no Instagram, em que a frase “Belém merece, sim, a COP 30” foi colocada em destaque.  A cidade realmente merece, assim como merece todos os legados positivos que esse evento pode deixar. Belém é a porta de entrada da Floresta Amazônica, uma cidade entrecortada por rios, igarapés e baía, que, em seus primórdios, chegou a ser pensada como a “Veneza brasileira”. Desde então, já se percebia e era revelado o imenso potencial que sempre teve.

Hoje, no entanto, Belém chega à contemporaneidade sofrendo também com o desequilíbrio climático e os distanciamentos sociais. No contexto municipal e socialmente falando, percebe-se uma dicotomia gritante. Um exemplo emblemático é a Vila da Barca, uma comunidade de palafitas às margens da Baía do Guajará, que contrasta diretamente com o bairro do Umarizal, o metro quadrado mais caro da cidade.

A Avenida Doca de Souza Franco, recentemente revitalizada e chamada a Nova Doca, é um símbolo dessa contradição, pois a obra que resultou em um belo empreendimento urbano, acabou por direcionar o fluxo de esgoto justamente para as margens da Vila da Barca. O impacto gerou protestos da comunidade e de parte da população belenense, que enxergou e não se calou diante do descaso por parte do poder público. Uma obra dessa magnitude poderia e deveria ter incluído a Vila, levando saneamento básico e melhor qualidade de vida aos moradores, mas não foi essa a intenção: a comunidade foi tratada apenas como destino do esgoto do novo empreendimento.

Ainda assim, a Vila da Barca resiste. Seus moradores protestam, tornam-se visíveis diante da “pseudo-invisibilidade do poder público” e constroem novas formas de (re)afirmar sua identidade. Um exemplo inspirador disso é o projeto do Museu da Vila da Barca, idealizado por jovens da comunidade como um espaço de resistência, preservação de memórias e fortalecimento identitário.
O museu pretende ser um centro de referência profissional, social e ambiental, integrando os projetos culturais já existentes na Vila. Embora ele ainda não exista fisicamente, o projeto mantém um perfil ativo no Instagram (@museumemorialviladabarca) e realiza campanhas de arrecadação para cada etapa rumo à sua construção final e implementação desta ideia (viladabarca.com.br).

Escolhi destacar a Vila da Barca porque considero essencial denunciar o descaso político e social que ainda marca a relação do poder público com as comunidades periféricas de Belém. Como é possível desenvolver projetos grandiosos como a “Nova Doca” e o “Porto Futuro 2”, sem incluir a revitalização dessas áreas vizinhas e vulneráveis? Um projeto construído junto com a comunidade, teria sido inspirador.

Como museóloga, vou me permitir falar apenas sobre espaços expositivos. Sempre me questionei sobre o motivo de uma cidade tão rica culturalmente como Belém ser tão carente de centros culturais, pois, em diversas capitais, algumas instituições privadas criaram os seus, com equipamentos e corpo técnico da melhor qualidade. Por que essas grandes corporações públicas ou privadas não trazem para Belém seus centros culturais? Será que não merecemos a oportunidade de receber grandes exposições que chegam com tanta frequência a outras regiões do país?!

Quando comecei a atuar e compreender os bastidores da museologia, como: transporte, acondicionamentos e seguros de obras de arte, passei a entender parte das razões. No entanto, entender não é o mesmo que aceitar. Continuo sem aceitar esse descaso histórico, até porque, em alguns momentos, Belém foi, sim, incluída no circuito de algumas grandes exposições nacionais, o que prova que é plenamente possível fazê-lo com planejamento, respeito e inclusão do custo amazônico em seus projetos.

Atualmente, não estou morando em Belém, mas meu “satélite afetivo e museológico” está permanentemente conectado a ela. Recentemente, conversando com um servidor público da área museológica de Brasília, ouvi dele que Belém seria “pequena demais” para sediar a COP 30 e que a cidade “não daria conta de tudo”. Respirei fundo, o localizei no espaço e no tempo e perguntei se conhecia o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, quando a cidade recebe cerca de 2,5 milhões de pessoas e disse que: Belém vai arrasar na execução da COP30″.

Por conta da COP, Belém tem vivido uma verdadeira efervescência cultural. Surgiram tantos novos espaços expositivos, que é até fácil se perder entre eles. Alguns me parecem que serão permanentes, como o Museu das Amazônias e o Centro Cultural da Caixa Econômica, ambos localizados no complexo do Porto Futuro 2, ao lado da Estação das Docas, o que nos enche de esperança, já são espaços recém-inaugurados que permanecerão como legado para a população; e os que serão temporários são uma oportunidade única para vivenciar o momento. Quanto conhecimento, Ciência, Arte e Cultura pousado na cidade esperando para ser aproveitado em sua plenitude. Queria muito estar vivenciando isso.

As duas exposições que visitei rapidamente durante minha breve passagem por Belém, durante os festejos do Círio, estão belíssimas e,  uma delas, é composta   de obras dos  acervos de museus do IBRAM.

O Museu das Amazônias nasce com duas exposições impactantes: a “Amazônia”, de Sebastião Salgado, e “Ajuri”, que é uma mostra com artistas amazônidas e nacionais. Para falar da obra de Sebastião Salgado, qualquer coisa se torna insuficiente, não é?! Então, vou me ater à segunda exposição, especificamente a duas obras: “Simbiosfera” e “Fogo”, que me levaram às lágrimas. Oriento visitar com tempo para observá-las em todas as suas nuances e acredito que emocionará qualquer pessoa com o mínimo de sensibilidade e preocupação com o planeta e com a Amazônia, no entanto, para nós, seres habitantes desse lugar, dilacera e apavora o que é revelado por elas, só de lembrar o que senti, me emociono. Na entrada, nos deparamos com uma vídeoinstalação de Roberta Carvalho, um globo de led gigante, intitulado de “Simbiosfera”, que representa “a centralidade da Amazônia no imaginário mundial”. É interessante observar de vários pontos no primeiro andar, após isso, ir ao segundo andar para visualizar um outro momento da obra, que, na minha percepção, remete a um globo ocular, pois visualizamos o reflexo da obra com uma determinada profundidade. Imediatamente, fui remetida à obra Sons da Terra (2009), de Doug Aitken, que se encontra no museu Inhotim. Obras assim sempre me deixam em transe e passo dias digerindo. Na minha mente, as duas obras conversam perfeitamente e fiquei imaginando como seria uma obra (que acho, até, que já existe) com os sons da floresta.

A segunda obra com  o título de “Fogo”,  é de Estevão Ciavatta, que se trata de uma projeção imersiva, com narração de Dira Paes, onde, para assistir, nos sentamos em objetos em formatos de “troncos” queimados, acredito que compõem a obra, se não, deveriam. Ela testemunha a importância do Fogo para a floresta e seus habitantes e mostra que, ao sair do controle, transforma-se em grande tragédia. Impossível sair dali da mesma forma que entrou.

A segunda visita foi ao Centro Cultural da Caixa Econômica, também com duas exposições. Logo na entrada, a exposição Espíritos da Floresta que fica até janeiro de 2026 e apresenta obras que evocam os Espíritos da Floresta como guardiões da memória ancestral, onde reúne pinturas, instalações, esculturas, vídeos e grafismos criados pelo coletivo de artistas do povo Huni Kuin, sob a curadoria da pesquisadora e crítica de arte afro-indígena tupi-guarani Aline Ambrósio, também muito bonita.

A outra exposição Paisagens em Suspensão, traz obras de artistas como Portinari, Djanira, Adriana Varejão,Emmanuel Nassar, Frans Krajcberg, Maria Martins, Farnese de Andrade, Xadalu Tupã Jekupé, Ricardo Ribenboim, Siron Franco, Heitor dos Prazeres, Daniel Senise, Anna Bella Geiger e Eliseu Visconti. Também é uma exposição que emociona pela presença de artistas tão importantes para as artes plásticas brasileiras e confesso que me deparar com Portinari logo na entrada, seguido por Djanira, Adriana Varejão (amo a obra dessas duas mulheres) e o paraense Emmanuel Nassar foi intenso e emocionante. A exposição é composta por 50 obras que fazem parte do acervo do Museu Nacional de Belas Artes e Museus Castro Maya, ambas instituições vinculas ao Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) e com curadoria de Daniela Matera e Daniel Barreto.

Essas quatro exposições são apenas um suspiro do que ainda estava por vir para a COP 30. Se estivesse por lá, não sei se estaria nas plenárias ou saltando de uma exposição para outra. Sendo assim, para concluir, vou listar algumas das diversas exposições que passaram pelo meu Instagram e que estão espalhadas pela cidade. Torço daqui de terras distantes que muitas perdurem por mais tempo pela cidade.

Encerrando estas linhas, deixo registrado meu agradecimento aos amigos museólogos do Museu das Amazônias, Andrey Leão e Gabriele Martins, e à amiga Janice Farias, cuja dedicação, escuta e compromisso com a cultura amazônica confirmam que Belém é capaz de acolher uma COP e muitos outro eventos de repercussão internacional — e de se reconhecer como cidade de memória, de luta e de direitos, uma Belém que inclui, com dignidade, todas as suas margens.


Sônia Nascimento é museóloga e mestra em patrimônio cultural.

Imagem: Luiz Braga. Tajás, 1988. Enciclopedia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira

Arte e Cultura

Ignatiana Visualizar tudo →

IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

Deixe um comentário