Esperança no caminho das Comunidades de Vida Cristã

Davi Mendes Caixeta, SJ

Pensar, refletir, rezar, buscar, contemplar a esperança. Esse é um exercício a que diversas pessoas têm se dedicado, especialmente nos contextos de desafios e dificuldades que muitos vivem, como situações de miséria, sofrimentos, angústias e desolações. Diante dessa realidade, desvendar caminhos de esperança é um imperativo que se coloca para dar sentido a nossa vida. Isso ficou evidente quando a humanidade atravessou a pandemia de Covid-19. Ademais, parece fazer parte da condição humana procurar por caminhos de esperança. Mesmo nas situações de alegria, paz e consolação, as pessoas estão sempre buscando e confirmando sua esperança. Lembra-se da inspiração de Paulo Freire, considerando a esperança a partir do verbo esperançar, ir atrás, construir, não desistir.

Atenta e sensível à importância da esperança para a vida humana, a Comunidade de Vida Cristã – CVX, na Assembleia Mundial que aconteceu em Amiens, França, em agosto de 2023, trouxe como tema principal “Discernir os caminhos para a esperança”. Nesse mesmo sentido, a CVX no Brasil, no Encontro Nacional que ocorreu em Salvador, Bahia, em setembro de 2023, também colocou como tema principal: “Nosso compromisso com os caminhos da esperança”. Diante disso, esse texto é fruto de um dos momentos formativos do Encontro Nacional, em que foi possível realizar bonitas partilhas e considerações, percorrendo os seguintes passos: iluminar, rememorar, refletir, aprofundar e discernir.

Iluminar. Retomamos alguns trechos das Sagradas Escrituras, percebendo a quantidade de citações sobre a esperança, a profundidade e a força dessas palavras para a vida do povo de Israel, para os discípulos, para as comunidades cristãs. Nos Salmos, frequentemente cantamos: “Somente em Deus eu encontro paz e nele ponho minha esperança” (Salmo 62,6), como gestos de confiança e louvação ao Senhor. Os profetas em diversas ocasiões ajudaram e ainda ajudam o povo a recolocar a esperança em Deus, especialmente nos momentos de provação: “Tu és a única esperança do povo de Israel, tu és aquele que nos salva quando estamos em dificuldades” (Jr 14,8).

Tantas ações e palavras de Jesus, ao ensinar, acolher e curar, tiveram uma intencionalidade messiânica, fazendo com que as pessoas recobrassem sua esperança. Entre tantos momentos, podemos lembrar a cura do cego Bartimeu: “Vai, tua fé te salvou” (Mc 10,52). Também o encontro com a mulher pecadora que lavou com lágrimas os pés de Jesus: “Tua fé te salvou, vai em paz!” (Lc 7,50). A fé em Jesus Cristo está fortemente vinculada à redescoberta de caminhos de vida e esperança, principalmente por aqueles que se encontravam em situações de grande angústia.

As primeiras comunidades cristãs, com grande frequência, foram exortadas a se fortalecer na esperança. Assim, Paulo escreveu: “Que Deus, que nos dá essa esperança, encha vocês de alegria e paz, por meio da fé que vocês têm nele, a fim de que a esperança de vocês aumente pelo poder do Espírito Santo!” (Rm 15,13). No conhecido hino ao amor, esse apóstolo retoma as três virtudes teologais: “Portanto, agora existem estas três coisas: a fé, a esperança e o amor. Porém a maior delas é o amor” (1Cor 13,13). Além disso, na Carta aos Hebreus, a esperança, segurança de nossas vidas, é simbolizada pela âncora: “A esperança, com efeito, é para nós como uma âncora da alma, segura e firme. Ela penetra para além da cortina do Santuário.” (Hb 6,19).

Rememorar. Como segundo passo, rememoramos histórias de esperança em nossas vidas. Houve um breve exercício pessoal, intitulado “elpidografia” (elpis, esperança em grego), em que cada pessoa foi convidada a lançar um olhar de esperança para o próprio itinerário de vida, recolhendo momentos fortes em que foi possível identificar a esperança em Deus. Em seguida, algumas pessoas puderam partilhar essas histórias, narrando como a esperança perpassou e tenha perpassado suas vidas, em momentos importantes, nas relações familiares, com fortes experiências de aprendizado e confiança em Deus.

Refletir. Enriquecidos pelas Palavra de Deus e pelas histórias de esperança, o terceiro passo foi construir uma bonita reflexão sobre a esperança na atualidade. Tradicionalmente, a esperança é uma virtude teologal, juntamente com o amor e a fé. Em outras palavras, a esperança, assim como o amor e a fé, é uma graça, uma iniciativa divina, uma experiência que vem ao ser humano e lhe suscita gestos elementares da existência, como amar, acreditar e esperar. Ademais, a esperança frequentemente é referida a um futuro prometido, que abriga uma beatitude, para além da experiência presente.

No entanto, atualmente, compreende-se que a esperança não se restringe exclusivamente ao âmbito cristão, mas se trata de um existencial humano. Andrés Torres Queiruga, seguindo o pensamento de Laín Entralgo, coloca: “A primeira coisa que se deve afirmar acerca da esperança é a profundidade e a universalidade de sua implantação no coração do homem” (Queiruga, Esperança apesar do mal, 2007, p. 13). Isso significa que a esperança pertence ao grupo das vivências fundamentais de uma pessoa, mobilizando suas forças e suscitando questões sobre o sentido da vida. Atualmente, a preocupação por compreender a esperança se universalizou, como uma dimensão constitutiva do ser humano, interrogante último e radical. Assim, há diversos caminhos que propõem respostas a essas fundamentais do ser humano, inclusive a religião, o cristianismo.

Tendo em vista a resposta cristã sobre a esperança, Queiruga sugere uma mudança de paradigmas. Primeiramente, coloca que se tem enfatizado o esquema da esperança cristã a partir do seguinte esquema da salvação: Paraíso – Queda – Castigo – Redenção – Tempo da Igreja – Glória. Porém, também esse teólogo entende que tem ocorrido uma deformação dessa visão, com distorções e leituras fundamentalistas, as quais ameaçam a deformar esse esquema. Algumas consequências negativas dessas deformações são perversão da imagem de Deus, como deus cruel e castigador, visão do mal e do pecado como castigos divinos, separação dos mistérios da criação e da redenção, limitar a esperança como prêmio a alguns eleitos.

Num segundo momento, Queiruga propõe uma nova abordagem da salvação e da esperança cristãs a partir do seguinte esquema: Criação – Crescimento histórico – Culminação em Cristo – Tempo da Igreja – Glória. Com isso, esse teólogo busca reafirmar a compreensão de Deus, criador e redentor, que é amor. Também procura mostrar a relação inseparável dos mistérios da criação e da redenção, como mundo criado e querido por Deus, desde a sua origem. Nesse segundo esquema, não se nega a realidade do mal e do pecado, mas o foco recai sobre a história do ser humano, que é chamado a um caminho de crescimento, em que há diversos obstáculos e limitações não desejados por Deus. No final desse caminho, pela fé na presença do Crucificado-Ressuscitado, a pessoa é destinada a uma plenitude no amor do Deus-Abbá.

Aprofundar. Como quarto passo dessa reflexão, somos provocados a aprofundar nossa vivência da esperança cristã, retomando nossa relação de amor com Deus e com o próximo, a partir de uma fé madura em Jesus Cristo. Também somos convidados a lançar novos olhares a nossas histórias de esperança, tanto no nível pessoal como comunitário. Nesse sentido, a vivência de nossa esperança vem explicitar algumas qualidades.

  1. Uma esperança pessoal, apoiada na confiança em Deus, no amor ao próximo, através das relações humanas. A afirmação do caráter pessoal constitui o núcleo mais íntimo, de um amor relacional, que respeita a liberdade.
  2. Uma esperança realista, que sublinha a inserção e o engajamento do ser humano em determinado contexto. O ser humano é corresponsável pela criação, chamado a colaborar com Deus no cuidado com o próximo, com a Casa comum, reafirmando a dimensão práxica, a solidariedade e a fraternidade da esperança cristã.
  3. Uma esperança universal, expressando que o amor criacional e salvífico de Deus não é exclusivista, mas destinado a toda a humanidade. Deus cria e chama a todos para a felicidade, em comunhão com ele, não abandonando nenhum de seus filhos e filhas.
  4. Uma esperança orante, com uma oração significativa e verdadeira, que nos convida a rever nossa relação com Deus, nossa compreensão do mistério pascal. Nossa oração passa pela lição definitiva da cruz, mas não fica resignada ao abandono, sim tem como horizonte a ressurreição.
  5. Uma esperança absoluta, insistindo que o fundamento último de nossas vidas é o amor incondicional e infinito de Deus. Esse caráter absoluto apoiado no amor nos torna capazes de reafirmar, sem soberba, sem comodismos, mas com confiança que “a esperança não falha”.

O exercício de aprofundar a esperança, em outras palavras, é aprofundar nossa fé na pessoa de Jesus. A vida e a oração de Jesus nos acompanham numa esperança que exala confiança e entrega ao amor e à vontade do Pai, numa esperança que nos torna responsáveis e participantes da criação, nos torna capazes de abraçar toda a humanidade, transformando nossa oração e nossa relação com Deus e com o próximo.

Discernir. Como último passo desse momento formativo, suscitamos alguns pontos para discernir caminhos de esperança, sejam caminhos pessoais, sejam caminhos comunitários, como cristãos e cristãs que vivem a espiritualidade inaciana. Para isso, é imprescindível retomar algumas falas do Padre Arturo Sosa, no discurso proferido na Assembleia Mundial da CVX em 2023. Ressalta-se a pertinência em aproximar esperança com discernimento, como aponta o próprio tema do encontro: discernir caminhos de esperança.

Volta-se à história do peregrino Inácio de Loyola, percebendo como a esperança fez parte da vida e do caminho desse homem. Ao rememorar alguns itinerários desse peregrino, Padre Arturo Sosa coloca a esperança como a bússola que orientou seus passos. Em sua grande entrega e confiança na Providência divina, Inácio desejou ter como refúgio somente a graça do Senhor, crescendo nas virtudes teologais da fé, da esperança e do amor. Nos Exercícios Espirituais, essas virtudes teologias estão associadas à própria experiência da consolação espiritual (EE 316).

Assim, para Inácio de Loyola, a esperança é um modo de viajar, de peregrinar. Nós também somos provocados, em nossas peregrinações cotidianas, a viajar em “modo esperança”, para avançar pelos caminhos queridos pelo Senhor.

A CVX, como comunidade laical, inaciana e apostólica, inspirada pela espiritualidade inaciana, colaboradora na missão de “redenção do gênero humano”, como disse Inácio no Exercício da Encarnação (EE 101-117), é chamada a recobrar sua esperança em Cristo, em seus modos de proceder, rezar, agir, encontrar, peregrinar. Respondendo como Maria, “faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38), membros e comunidades CVX vêm participar desse grande mistério de encarnação-redenção, concretizando a esperança cristã no mundo presente.

Referências

  • QUEIRUGA, Andrés Torres. Esperança apesar do mal. A ressurreição como horizonte. São Paulo: Paulinas, 2007.
  • LACOSTE, Jean-Yves. Esperança. In. Lacoste. Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Loyola, Paulinas, 2014. p. 644-650.
  • SOSA, Arturo. Mensagem do Padre Arturo Sosa, na XVIII Assembleia Mundial da Comunidade de Vida Cristã – Amiens, França (7 de agosto de 2023).

Davi Mendes Caixeta, SJ é jesuíta, Assistente Eclesiástico da Regional Bahia da Comunidade de Vida Cristã (CVX), Feira de Santana (BA).

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Imagem: Lígia de Medeiros. Sobre Borboletinhas e Bandeirinhas. Azulejaria.

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

2 comentários Deixe um comentário

  1. Como é importante discernir e culrivar a esperança nos dias atuais!
    Obrigada por nos ajudar a refeltir e atuar para viver e transmitir esperança!

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