Encontrar Deus no dia a dia

Sandra Regina Marques Monteiro

Hoje encontro Deus, existe sempre o hoje do encontro.

Papa Francisco. Catequese de 10/02/2021

Jesus disse que Ele era o Caminho, a Verdade e a Vida, no capítulo 14 de João, versículo 6. O cristão, para encontrar Deus, deve buscar o caminho que é Jesus. Os primeiros cristãos buscavam caminhar como Jesus os ensinou, colocando suas vidas nas mãos de Deus. A alegria do encontro motivou muitos a se aproximarem cada vez mais do Senhor, conhecê-lo e amá-lo mais. A oração os levava ao autoconhecimento e à vontade de levar Deus a todas as pessoas. Descobriam sua vocação, seus dons, seu carisma e seu modo de servir a Deus e à comunidade. A vida nas primeiras comunidades era voltada para o próximo, para que todos vivessem em comunhão e no amor do Pai, fruto da oração e da missão.

Deus espera que cada um de nós seja feliz e que, assim como nas primeiras comunidades, vivamos unidos como irmãos. Viver em comunidade é exigente e difícil, mas também é prazeroso e reconfortante, além de trazer apoio a cada indivíduo e à comunidade.

A vida cristã em comunidade tem como alicerce a oração, a fraternidade mútua entre os membros e a missão. Nas primeiras comunidades, a vida era colocada a serviço dos outros, através dos dons e da adesão à vontade de Deus. Os cristãos viviam unidos em comunidade. A oração, assim como foi na vida de Jesus, era constante, buscando a vontade de Deus em suas vidas.

Com o passar do tempo, a história foi mudando a organização eclesial e modificando o modo de agir dos cristãos. A organização foi sendo pensada, rezada e modificada ao longo dos anos. Hoje em dia, devido a vários fatores, alguns preceitos foram deixados de lado e, com as novas orientações, vamos nos adaptando e mudando também nossa forma de pensar, viver e rezar como Igreja. Atualmente, vivemos em um mundo tão cheio de atividades, internet e trabalho, que muitas vezes mal prestamos atenção em nossas ações. Quantas vezes nos sentamos à mesa para almoçar e temos tanta pressa que mal percebemos o sabor dos alimentos, engolindo-os sem saboreá-los e sem aproveitar o momento da refeição.

Na maioria das vezes, entramos em um ciclo de atividades cotidianas, entramos no “piloto automático” e nem percebemos o que estamos fazendo. Acordamos, fazemos o que temos que fazer de maneira mecânica e repetitiva e, ao invés de viver, apenas sobrevivemos. A vida vai acontecendo e passa por nós. Sem perceber, não nos damos conta do que fazemos no dia a dia de forma contínua. Na Igreja, isso também acontece. Nas pastorais e atividades eclesiais, entramos na igreja por alguma necessidade nas pastorais ou até mesmo por alguma busca pessoal, mas às vezes esquecemos o motivo que nos leva à Igreja e por quem estamos lá.

As igrejas têm tido procura para os sacramentos, celebrações e orações devocionais. A maioria dos cristãos entra e sai da Igreja cumprindo todos os passos da iniciação cristã, mas muitas vezes falta o essencial, esquecemos do Mestre, esquecemos do Pai.

O que tem faltado é a busca da intimidade com o Senhor, o cultivo de uma vida de oração que coloca nossos corações no coração de Deus. Aquela oração praticada por Jesus durante todo o tempo de sua vida terrena. Cristo, em sua peregrinação terrena, buscava escutar a Deus. Buscava lugares silenciosos e afastados, e na intimidade conversava com o Pai. Os cristãos são convidados a percorrer o mesmo caminho em seu dia a dia, colocando-se na presença do Senhor. Orar em silêncio e paz, em intimidade com Deus.

A Igreja se preocupa com a Espiritualidade em alguns de seus documentos, principalmente aqueles que tratam da Iniciação Cristã e da vida do discipulado. No Documento de Aparecida, temos algumas pistas de ações e caminhos para essa vivência cristã: “… uma busca de espiritualidade, de oração e de mística que expressa fome e sede de Deus” (APARECIDA, 2007, 99, g). O Documento ainda ressalta que as comunidades devem proporcionar, no seguimento de Jesus, a Palavra de Deus como fonte de sua espiritualidade, motivando e estimulando a oração pessoal e comunitária. O Documento valoriza também a piedade popular, destacando “… o primado da ação do Espírito e a iniciativa gratuita do amor de Deus” (Documento de Aparecida, 2007, 263).

Durante muito tempo, os leigos católicos foram orientados a fazer orações devocionais e não tinham acesso à Bíblia. O que tinham à mão era o terço e os folhetos devocionais, que estimulavam a repetição na oração. Com o passar dos anos, a experiência das primeiras comunidades foi-se perdendo, pois a Igreja acreditava que os leigos não tinham discernimento para ler a Bíblia e conduzir suas vidas sem a orientação de um sacerdote. O Concílio Vaticano II traz a proposta de que “é preciso que os fiéis tenham acesso patente à Sagrada Escritura (…) e a Palavra de Deus deve estar sempre acessível a todos…” (Dei verbum, 1965, 22).

Com o acesso à Bíblia e a utilização da Palavra como instrumento de diálogo com Deus, as pessoas tiveram a oportunidade de crescer na fé e na comunhão com o Senhor, assim como Jesus foi conduzido pelo Espírito Santo (cf. Mc 1,12-13) em vários momentos de sua vida, buscando discernir a vontade do Pai.

O documento 107 da Iniciação Cristã, da CNBB, destaca o encontro de Jesus com a Samaritana, no Evangelho de João, como inspiração. A mulher tem sede e vai buscar água, no poço encontra o Mestre e lá tem um diálogo profundo e transformador. E é justamente esse diálogo que aproxima a mulher de Jesus, a partir do qual Ele lhe oferece a água que sacia a sede do conhecimento de si e de Deus. O documento mostra como o Evangelho de João ajuda na construção de um itinerário que apresenta Jesus e convida a ser íntimo com Deus.

A oração, como vemos nos Evangelhos, na vida de Jesus, como nos mostram os santos e místicos, é um caminho para o autoconhecimento e para descobrir a vontade de Deus em nossas vidas. A atualidade do mundo nos traz tempos difíceis: pandemia, guerras, secularismo, fake news, discriminação, preconceito, desigualdade social. A vida da maioria das pessoas é tão agitada que, pela falta de tempo, acabam se afastando de Deus, da vida comunitária, e os que ainda vivem a fé se apegam a devoções e materiais que levam a respostas rápidas. Escutar, saborear e contemplar são ações que foram esquecidas por muitos cristãos.

Nas paróquias, isso fica evidenciado, uma vez que a proposta de silêncio, muitas vezes, assusta e reforça a falta de uma prática de oração pessoal, que faz com que muitos não conheçam e nem saibam que é possível encontrar Deus e conversar com Ele no dia a dia. As pessoas cristãs que se propõem à vida através da espiritualidade encontram um grande oásis, uma oportunidade de caminho para a vida. Os que bebem do poço e saboreiam a Água da vida eterna são convidados a levar essa boa nova a outras pessoas. Há alguns anos, alguns jesuítas e leigos da Espiritualidade Inaciana levaram a algumas paróquias do estado de São Paulo uma proposta de retiro inaciano. Geralmente, de um dia ou de um final de semana, mas dando a oportunidade a leigos de encontrar o silêncio e, muitas vezes, Deus em suas vidas.

A partir dessa experiência, muitos leigos puderam crescer e aprofundar sua fé e seu conhecimento de Deus. A proposta de levar esse modo de oração foi se aprimorando com o retiro Quaresmal, usado em muitas paróquias e que ajudou muitas pessoas.

A iniciativa desses retiros e as propostas dos documentos da Igreja no Brasil, principalmente o documento 107 das edições da CNBB, fizeram com que essa experiência fosse adaptada para que nas paróquias pudesse haver a oportunidade de oferecer um caminho orante aos fiéis. A partir dessa proposta dos jesuítas, o retiro inaciano foi adaptado para uma experiência de retiro a partir da Lectio Divina, ou Leitura Orante, que tem uma metodologia de oração muito parecida com os passos da oração inaciana. Essa metodologia é amplamente conhecida na Igreja e traz uma proposta de caminho para o exercitante, é mais fácil de ser aceita e de ter continuidade em uma experiência paroquial, além de ter mais opções de acompanhantes ou diretores espirituais nas dioceses. A Lectio Divina foi proposta como retiro ou dia de oração para muitas paróquias da região de Campinas que tiveram essa experiência no deserto e tem ajudado a perceber que Deus vem ao encontro de seu povo.

Na prática, a proposta geralmente é de um dia, onde é feita a aplicação da metodologia dos quatro passos da Leitura Orante: a leitura, a meditação, a oração e a contemplação: “Buscai na leitura e encontrareis na meditação; batei pela oração e encontrareis pela contemplação” (Monge Guido II, Idade Média). Os quatro passos se transformaram em um método muito utilizado pelos cristãos para a leitura e oração com a Palavra de Deus. Muitos padres e leigos também podem contribuir na caminhada, uma vez que a Lectio é amplamente conhecida e difundida pelos sacerdotes diocesanos. Os inacianos auxiliando na divulgação da oração ajudam muito os fiéis, pois, apesar de viverem a metodologia de Santo Inácio, propõem um caminho que já foi percorrido por tantas pessoas na Igreja.

O importante é buscar e encontrar Deus, seguir a vida segundo a vontade do Pai.  A intimidade proporcionada pelo encontro desses dois caminhos espirituais ajuda também outros a encontrarem seus próprios caminhos espirituais. A proposta feita nas paróquias utiliza o ambiente onde for possível proporcionar silêncio, para se ter um conhecimento interno do Senhor (Exercícios Espirituais de Santo Inácio). A preocupação maior é passar a proposta de silêncio interior e a abertura ao encontro com o Senhor. Geralmente, esses retiros são propostos pelos párocos, e com isso, há adesão por parte dos leigos e das leigas das paróquias. O grupo é motivado a acolher a vivência espiritual através da Palavra no momento em que estiver em retiro e dar continuidade em sua vida diária. Para que os exercícios possam ser feitos com afeição e vontade, geralmente é feita a leitura dirigida, que ajuda muito. A proposta também contém momentos de partilha e momentos de oração comunitária. Nessas propostas paroquiais, também é feita a aplicação dos sentidos: por meio dos cinco sentidos, aprofundando a Palavra de Deus. A ideia é auxiliar as pessoas a tirarem proveito de suas sensações para se encontrarem a si mesmas e, assim, encontrarem Deus. E terem uma vida de fé e coerência, lembrando que não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas saborear internamente as coisas (EE.EE nº 2).

O retiro nas paróquias deve ser feito de acordo com cada realidade, adaptando-se a cada lugar para ajudar os membros das paróquias a encontrarem um momento de se retirar da vida cotidiana, silenciar o coração e sentir a presença de Deus.

Nas orações, é importante colocar sempre a simbologia, que pode ser física ou imaginária, uma vez que as pessoas hoje em dia precisam de algo que dê corpo, que materialize a sua imaginação e a sua vida espiritual. A proposta nas paróquias deve ter continuidade, e a preparação deve ser feita sob orientação do padre ou de um grupo da paróquia, para que, posteriormente, possam ter na vida das pessoas o gosto de continuar a encontrar Deus. A vida mística deve ser cultivada nos ambientes eclesiais, para que os leigos possam ter uma vida de oração e discernir o seu chamado e a sua vocação.

Há alguns anos, tenho aceitado os pedidos de “retiro” nas paróquias, com noites ou manhãs de espiritualidade, celebração do Ofício Divino das Comunidades. Formando pessoas para dar continuidade ao trabalho com a espiritualidade em suas paróquias e comunidades. Talvez seja pouco e pequeno o serviço, mas lembro da fábula do beija-flor que conta que certo dia a floresta pegou fogo e passou a ser consumida por um grande incêndio. Os animais fugiam apavorados em busca de abrigo e segurança. Contudo, um pequeno beija-flor voava repetidas vezes, do rio para a floresta, com gotas de água em seu bico e as despejava sobre as chamas que atingiam a vegetação. Então, uma coruja, que também fugia, passou pelo beija-flor e perguntou: “o que você está fazendo, beija-flor?” Ele respondeu: “não está vendo? Estou trazendo água do rio para apagar o incêndio antes que ele destrua toda a floresta”. Ao que a coruja retrucou: “você deve ser maluco! Não vê que é impossível apagar esse incêndio enorme com uma gotinha de água?”. “Sei disso, mas estou fazendo a minha parte”, respondeu o beija-flor.

Acredito que nós, que encontramos e experimentamos a Deus em nossas vidas, na espiritualidade inaciana, devemos auxiliar as pessoas a buscarem meios e caminhos para o encontro com o Senhor. O trabalho nas Paróquias é uma grande contribuição para a Igreja – e certamente Inácio aprovaria –, a fim de que todos possamos “ver novas todas as coisas em Cristo”. Por isso, coloco à disposição meus conhecimentos para que, onde quer que me chamem, possa colocar à disposição dos irmãos meus dons e talentos e contribuir na salvação dos homens, afinal, tudo para maior glória de Deus.


Sandra Regina Marques Monteiro é leiga, pertencente à Comunidade de Vida Cristã (CVX), Comunidade Nossa Senhora da Estrada, São Paulo (SP).

CVX: Uma Vocação

Imagem: Lígia de Medeiros. Karaja Corporal. Azulejo.

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

1 comentário Deixe um comentário

  1. Compartilhar a espiritualidade inaciana nas paróquias é uma proposta de evangelização continuada. Que o Senhor lhe sustente e inspire nessa missão!
    Obrigada por compartilhar!

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