Exercícios Espirituais: Um mergulho em minhas raízes – Caminho de liberdade

Deralda P. Souza

Experiências dos Exercícios Espirituais (EE) em minha vida: mergulhar em minhas raízes mais profundas, fazer uma viagem ao meu interior, conhecer a mim mesma. Colocar ordem nos meus afetos e, assim, compreender a vontade de Deus em minha vida. A Espiritualidade é sinônimo de Interioridade, diz o Cardeal José Tolentino de Mendonça no seu livro A Mística do Instante (Paulinas, 2016).

Chego ao Conjunto Cristina em Santa Luzia, com minha família: marido, uma filha, um filho e gestando um terceiro, numa gravidez de risco. Era novembro de 1981, quando o Conjunto Habitacional, com quase 4.000 habitações entre casas e apartamentos, foi inaugurado. Famílias chegavam de muitos lugares. Vinham de bairros de Belo Horizonte e até de outras cidades.  Histórias, costumes, sonhos e desejos diversos. O sonho da casa própria realizado. Alívio de viver sem pagar aluguel ou de morar de favor no lote de algum parente.

Casinhas todas iguais, apenas a cor das portas e janelas alternavam-se entre azul, verde e vermelha. A minha era verde. Parecia tudo certo, mas algo estava faltando. Havia uma sensação de vazio. Onde reunir para rezar, celebrar e partilhar nossas experiências, vividas antes e doravante. Reuníamos nas casas para rezar e conversar. Mulheres e homens cansadas/cansados. Muitas perguntas e poucas respostas. Nem sempre havia condições de entender tudo naquele momento. A caminhada seria longa e dificultosa: transporte precário, falta de comércios como padaria, farmácia etc. A esperança e otimismo se fizeram muito necessários. À espera de possíveis resposta era preciso VER NOVAS TODAS AS COISAS EM CRISTO. Ali era nossa Terra Prometida.

O Senhor, mais uma vez, vem em socorro de seu povo. Na Páscoa de 1982 chega o saudoso Pe. Ulpiano Vázques Moro SJ acompanhado de dois estudantes jesuítas. Foi celebrada a 1ª missa naquele chão, num galpão que servira de alojamento para os operários da obra de construção do conjunto. Não demorou e chegam as Filhas de Jesus: Ir. Maria Helena Lopes e outras.

Inicia-se aí um momento novo. A Espiritualidade Inaciana vai se acercando de mim, de mansinho, lenta e sutilmente. Em cada celebração/homilia e o jeito de realizar a missão pelos jesuítas, havia um toque inaciano. Algo diferente e eu não me dava conta do “novo” que chegava. Eis que no ano de 1985, após um período introdutório, iniciamos o percurso dos EE como método de oração e vida. Era um grupo de mais de 60 pessoas. E lá estava o Pe. Ulpiano que, a partir dali me acompanhou por muitos e muitos anos nos EE.

Até aí minha experiência de oração se dava como eu havia aprendido ao longo da vida: católica de berço, pais fervorosos, reza de terço, frequência às missas, pra mim estava bom. Isso me bastava. Conhecia um Deus que ouvia minhas súplicas. Ao iniciar a experiência dos EE, percebi que, como o cego Bartimeu, eu estava à beira do caminho. Desconhecia esse algo precioso e rico que me conduziria a uma convivência íntima com o Senhor. Vi-me peregrina, seguindo Jesus, nas pistas de Inácio. Havia expressões novas que nunca tinha visto ou as entendia com outro significado: moções/ desolação/consolação/discernimento/ânimo e generosidade, dentre outras. Não foi simples, nem fácil. Houve até vontade de desistir. Voltar e ficar à beira do caminho, onde era mais cômodo e confortável. Então percebi que o método pode ser rigoroso, mas com sabor de liberdade.

Quando ouvi pela primeira vez que eu deveria buscar o conhecimento interno do Senhor, fiquei assustada e confusa. Como assim? Quem sou eu para conhecer internamente a Jesus? Não sou digna nem capaz. Mas aprendi que ler a Palavra de Deus, diariamente, ter um tempo para saborear esta Palavra e, pela graça, fui me aproximando d’Ele, conhecendo seus sentimentos, seus hábitos, seu jeito de viver, amar e servir. Conhecê-lo não era para “alguns privilegiados”. Eu também podia. Mas não depende de mim. Tudo é dom, tudo é graça. Posso pedir.

Neste percurso dos EE, aprendi o Exame de Consciência Inaciano (Oração de Atenção Amorosa) – precioso jeito de repassar o meu dia diante do Senhor, sem medo de censura de minha parte nem da parte de um Deus que me ama, me acolhe e me entende. Sou de uma geração que fazer exame de consciência era garimpar pecado para confessar. Daí aceitar punição e sem sequer experimentar a doçura e a grandeza do perdão amoroso do Pai. Este método de exame inaciano me leva a experimentar a presença de um Deus amor e compaixão, ao longo do meu dia. Quando, onde e de que maneira eu experimento essa presença. Reflito: Quem sou eu? Onde estou? Para aonde eu vou? Por onde o Senhor está me levando? Louvo, agradeço e peço perdão. Preparo-me para um novo dia.

Num dia de oração pessoal, vivi uma experiência incrível: na minha Oração de Atenção Amorosa, examinei meu dia e percebi que a aridez da oração pessoal refletiu por todo o dia. Mesmo triste agradeci o dom da vida. Pedi perdão e fui dormir. Acordei com uma sede de encontro. Alterei minha rotina e rezei mais cedo. O texto At 8,26 – “um anjo do Senhor falou a Felipe, dizendo: Prepara-te e vai…” O caminho é deserto. Felipe e o Eunuco se encontram. O desejo deste prosélito da fé judaica de ser batizado e viver o seguimento de Jesus me tocou profundamente. “Preparar-me e ir”, colocar-me diante do Senhor e travar com Ele uma prosa, como dois amigos. É Ele que vem ao meu encontro. Qualquer dia, qualquer hora Ele está onde eu estou.  Só preciso abrir meu coração e me dispor. Ter o desejo de desejar imitar o eunuco: buscar pelo encontro e seguir Jesus. Lembro de uma frase do livro do Cardeal Tolentino: “NÓS PRECISAMOS DEIXAR QUE O ESPÍRITO NOS SURPREENDA, NOS DESINSTALE, NOS ABALE, NOS RENOVE, NOS FAÇA RENASCER”.

Pus-me a caminho com Felipe. Fui acolhida na caravana. O Senhor estava ali. Me acolhe e compreende minhas humanidades. Puro amor e compaixão. Saciou minha fome e sede. Fui afetada de tal maneira que tudo teve um novo sentido. Esvaziei-me de mim mesma para me encher da graça desse encontro. Descansei n’Ele. Veio paz, consolação e o apelo: “Filha, vem! Segue-me. Coragem. Eu estou com você. Não fique à beira do caminho. Perdoe e ame sempre. Faça o bem a todas e a todos e a qualquer uma, a qualquer um. Colabore! Sirva no Reino!”

A Espiritualidade Inaciana e a Comunidade de Vida Cristã (CVX) foram um divisor de águas em minha vida de fé e missão. Venho aprendendo com Inácio a ser fiel, acima de tudo, mesmo não sendo fácil reconhecer de imediato o Projeto de Deus. Porém, através da prática da oração diária e disponibilidade, busco modelar minha vida para a “Maior Glória do Senhor”. Procuro ter um olhar atento e uma memória agradecida pela experiência dos EE. Sou grata pelo Acompanhamento Espiritual – imprescindível e valioso ter alguém que ouve minha partilha de oração, caminha comigo. Contar com companheiras e companheiros, que não me deixam à beira do caminho e me animam na missão de testemunhar diante de todas e todos, são como aqueles que dizem ao cego Bartimeu: “Coragem! Vem! Ele está te chamando!”  É Jesus convidando a uma vida nova junto d’Ele. Rogo a Maria, Mãe amável, fiel servidora, que me inspire a ouvir e fazer tudo que Jesus me disser.

Revisitando minha história de ter encontrado a CVX, sinto o quanto enraíza e fortifica minha vida de fé e missão. Deixei-me cativar. Recordo da Celebração do Dia Mundial da CVX/CVX MINAS – BH em 2019: “nossos princípios e normas nos desafiam: buscar constantemente as respostas às necessidades de nossos tempos e a trabalhar em união com todo povo de Deus”. Compromisso de caminhar na Comunidade de Vida Cristã. Como membro a caminho, recebo de Cristo a missão de ser Sua testemunha, perante todas as pessoas, através de minhas atitudes, palavras e ações, identificando-me com a missão de anunciar a Boa Nova aos pobres.  Vou buscando uma convivência íntima com o Senhor. Relação exigente, porém, muito preciosa.  

Abraço fraternalmente e com gratidão a CVX pela acolhida, apoio e companheirismo.


Deralda P. Souza é leiga, pertencente à Comunidade de Vida Cristã (CVX), Comunidade São Francisco Xavier, Belo Horizonte (MG).

CVX: Uma Vocação

Imagem: Lígia de Medeiros. Linhas. Gravura.

Comunidade de Vida Cristã (CVX) Espiritualidade cristã Leigas e leigos

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

3 comentários Deixe um comentário

  1. Que bonito você contar sua experiência de mudança na qualidade de vida, a partir da oração!
    Obrigada por sair da beira do caminho e caminhar com o povo de Deus!!!

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  2. Belo Horizonte, 21/10/2023.

    Mãe,

    Exemplo de vida e graça!

    Força e dedicação em toda sua trajetória.

    A vida não foi um mar de rosas mas Santo Inácio e Jesus a guiaram por águas menos tortuosas.

    Aprendi a olhar o mundo com os olhos cheios de amor e bondade assim como Jesus.

    Vi que Experiências de Fé modificam o mundo , poucos sabem o quão é confortante seguir ao lado de Cristo.

    Obrigado, Minha Mamãe Deralda, por agir na criação dos filhos, assim como Cristo!

    Nós (filhos) em vários momentos não tínhamos nossas próprias pegadas na areia, apenas as suas , pois nas fases mais difíceis a Sra, amparada pela fé, nos carregou no colo.

    Te amo !

    Lucas

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