Espiritualidade Inaciana e vida profissional

Marco Aurélio Knippel Galletta

A aplicabilidade da Espiritualidade Inaciana na vida profissional: como moldou minha experiência de médico e professor

Quando eu era jovem, sonhava em ser médico, mas ainda não sabia dar forma a este sonho. Após muita luta interna, pensava na hipótese, mas, de tão remota e desafiadora, nem ousava explicitá-la para mim mesmo e muito menos para os outros.

Tinha entrado em um grupo de jovens paroquial fazia pouco tempo e estava maravilhado pela percepção que a religiosidade que via em casa poderia ser a mesma de outras pessoas, jovens como eu. Numa reunião deste grupo, estimulados pela assessoria de um casal adulto, partilhávamos nossos sonhos e desejos de futuro. Fui um dos últimos a falar, logo depois de um companheiro um pouco mais velho, bem articulado e extrovertido, ter confidenciado que queria ser médico. Eu travei! Não me via digno de compartilhar o mesmo sonho daquele rapaz que eu admirava. No meu ponto de vista, ele tinha as condições financeiras e intelectuais para fazer o Curso de Medicina e eu, com menos recursos, mais tímido e limitado intelectualmente, não tinha as mesmas condições. Mas o casal insistiu para que eu falasse e expusesse o que ia no coração: “Se você não conseguir dizer para si mesmo qual é o teu desejo, Deus não terá como te ajudar!”, disseram eles.

Eu então me enchi de coragem e disse, olhando para o chão, sem encarar as pessoas ao meu redor: “Meu sonho é ser médico!…” E logo emendei… “Mas é um sonho louco, acho que não tem como!…” Passaram-se alguns segundos, que pareceram uma eternidade para mim. Todos em silêncio. E eu rezando para ninguém fazer chacota com o meu desejo. Mas eis que surge uma voz pacificadora: “Que legal! Você leva jeito nisso!” E outra voz, já da assessora, me reafirmou, após fitar os meus olhos: “Nunca esqueça dos teus sonhos, até Deus indicar o contrário!”

Eu não sabia, mas aquele momento viria a ser um dos mais importantes de minha vida. Pude reconhecer meus desejos pela primeira vez e, a partir dos meus desejos, me identificar como pessoa. Pois somos todos seres humanos desejantes e é isso que nos impulsiona para a vida!

Somente muitos anos depois, já identificado com a espiritualidade inaciana, pude constatar que toda jornada humana digna deve começar com ânimo e generosidade e que, sem a percepção de nossos desejos, não conseguimos fazer uma jornada livre e autêntica. Reconhecer nossos desejos mais profundos é o primeiro passo para reconhecer nossa alma e perceber os afetos que a movem, seja para mais liberdade ou para mais conformidade com o pecado de não se perceber amado por Deus.

Como no tango, precisamos ter uma intenção, nascida no coração, antes de dar o primeiro passo! E é este primeiro passo, este fôlego inicial, que vai nos levar à caminhada pelo salão, tendo de se conectar com os demais e superar os obstáculos.

Mas esta primeira intenção, este desejo original, nem sempre é claro. Ouso dizer que quase nunca o é. Ele vem em meio a nebulosidades, porque ainda não se reconhecem todos os elementos internos e externos da decisão que virá.

Cinco anos depois desta conversa no grupo de jovens, após muitas dificuldades e momentos de desânimo e luta, eu entrava finalmente na Faculdade de Medicina da USP, começando meu sonho juvenil. Logo após ver meu nome na lista divulgada, entrei numa Igreja e chorei, agradecendo a Deus. Jesus era meu companheiro neste projeto e iria se sentar comigo nos bancos da faculdade. Eu não sabia bem como seria dali para frente, mas me colocava à disposição de Deus. Que tudo fosse para a maior Glória de Deus!

Eu realmente não sabia o que me esperava… Sendo um dos poucos da turma que tinha saído dos bancos da escola pública, tive muita dificuldade de me relacionar com os colegas e de entender alguns conceitos básicos que os outros já dominavam muito bem. Pensei em desistir por várias vezes, a principal delas no quarto ano, pois achava que tudo aquilo não era para mim. Só recentemente pude entender que sofria da Síndrome do Impostor, em que as pessoas se sentem menores e mais incapazes do que são, na comparação com os demais, muitos dos quais vivem o Efeito Dunning-Kruger, ou Síndrome do Tolo Prepotente, que vivem o contrário: se acham os melhores, quando na verdade estão abaixo da média.

De fato, eu me achava muito sozinho. Tinha me afastado da Igreja e do grupo de jovens da paróquia, onde cada um já tinha seguido um caminho diferente. Não sabia com quem dividir minhas angústias e me esquecia da companhia de Deus.

Porém, tomei coragem e fui conversar com um veterano do sexto-ano, que tinha conhecido em uma roda de conversa. Expus minha situação, meus sentimentos e dúvidas e saí do encontro fortalecido. Ele reconheceu em mim características de um bom médico e disse ser comum duvidar de si mesmo quando se lida com tanta informação e tantos dramas humanos.

A partir desta conversa providencial, enchi-me de confiança e alegria, e pude ter a energia suficiente para o resto do curso. Não por acaso comecei a ter uma visão mais voltada para fora de mim e comecei a participar mais das questões estudantis, envolvendo-me em uma greve dos alunos por melhores condições de ensino, virando diretor e depois presidente do centro acadêmico.

Mais tarde, pude entender a importância deste momento, em que eu decidi, certamente com a ajuda de Deus, a inverter a espiral negativa e egoísta – que gira para dentro e para baixo – para uma espiral positiva e altruísta – que gira para fora e para o alto. É a Metanoia, em que mudamos nossos paradigmas e conceitos, decidindo por ter uma atitude positiva em relação a vida, deixando de nos queixar do que está errado, propondo mudanças na realidade. Aquele veterano foi meu anjo para minha Metanoia!

Mais ou menos por esta época também tive outras pequenas frustrações. Eu tentava competir no Atletismo pela faculdade e me percebi não tão bom como gostaria. Após a terceira tendinite nos treinos, resolvi me afastar. Eu também tinha entrado na Faculdade me imaginando ser um bom clínico geral. Mas os estágios de Clínica Médica se mostraram frustrantes para mim. Não gostava do dia a dia desta área de atuação e tinha maior dificuldade em estudar seus conceitos e patologias associadas. Minha nota refletiu esta minha dificuldade e foi inferior ao que eu imaginava. Preocupei-me tanto com isso, que resolvi conversar com um dos professores, que me tranquilizou, apontando que ainda haveria muito nos próximos anos do curso para me desenvolver, mas me alertando que talvez não fosse esta a minha especialidade para o futuro.

Tive de lidar com minhas frustrações, com minha ferida narcísica. Eu não era o que achava que fosse. Mas tudo bem… Poderia ser outra coisa!…

Aos poucos, fui me apaixonando pela Obstetrícia e Ginecologia. Não sabia ainda bem o porquê, mas cuidar da saúde da mulher durante toda sua vida, em seu processo reprodutivo, e principalmente do parto e do nascimento de bebês, me atraia. Eu já dava alguns plantões acadêmicos em maternidade fora do nosso hospital, mas o fazia sem saber dar a devida razão. Esta proximidade com a especialidade foi crescendo e fui tomando gosto! Poderia dizer hoje que fui reconhecendo o desejo que Deus despertava em mim.

Revendo este processo hoje, posso dizer que foi fundamental o confrontar meus medos, angústias e defeitos com outras pessoas, que me apontaram a verdade sobre mim mesmo. Este é o melhor caminho psicopedagógico para sair da Síndrome do Impostor, mas é também o ensino de Santo Inácio para evoluir na caminhada espiritual. Deixar algo oculto ao orientador espiritual é dar margem para o Maligno. Expor suas dificuldades e pecados é o melhor caminho para o crescimento espiritual.

Ao me formar, acabei decidindo por fazer a residência médica na especialidade de Ginecologia e Obstetrícia. Mas antes, devia fazer o serviço militar obrigatório, postergado desde o Ensino Médio. Começava com certa frustração este período militar, por não poder  fazer logo o que eu queria, tendo de adiar um pouco mais o sonho profissional. Mas esta frustração acabou sendo essencial para minha vida futura. Este ano longe da instituição de ensino a que eu estava ligado acabou sendo um ano sabático, de reflexão sobre a vida, em que comecei a fazer psicoterapia, para entender melhor as minhas opções de vida e a fazer coisas diferentes, como mais exercício físico e alguns plantões voluntários na área em que eu iria me especializar.

Iniciei minha residência médica no Hospital das Clínicas da FMUSP, mesma casa que tinha me acolhido durante a graduação, e o fiz com muito mais disposição, muito por causa do ano de serviço militar. Reconhecia agora mais facilmente meu desejo profissional e entrava nele com muito ânimo e generosidade. Destacava-me entre os demais residentes pela minha dedicação e interesse, sendo bem-visto pelos chefes. De tal forma, cheguei ao final da residência médica com várias opções profissionais, dentro e fora do ambiente acadêmico. Foi então que sobreveio nova crise existencial, pois não sabia o que decidir, dentre tantas possibilidades.

Hoje vejo que não conseguia decidir, pois não sabia quais deveriam ser os critérios para esta minha decisão. Lembrava-me dos meus sonhos de juventude, da minha vontade de servir à população mais simples e de ir para o interior do país. Mas também havia outras boas opções: continuar no Hospital das Clínicas ou trabalhar fora, como profissional autônomo, em consultório. Paralelamente, os sonhos e as tensões de um namoro sério, que demandava decisões. Tirei férias e, ao invés de viajar com a namorada, resolvi viajar sozinho, para pensar na vida. Estava vivendo meu momento de crise existencial, e queria vivê-lo em silêncio. Hoje vejo que foi ação providencial de Deus.

Peguei as chaves da casa de praia de um irmão meu e para lá fui sozinho. Veio-me muita coisa no coração e na mente nestes 7 dias em que fiquei caminhando solitariamente na praia quase deserta. Pude ver minha vida em retrospectiva e aos poucos fui me aproximando novamente de Deus, sentindo falta daquilo que tinha vivido durante a adolescência. Mas eu já tinha 28 anos e não sabia o que fazer com o sonho que Deus tinha me permitido realizar! Qual era o fundamento da minha vida? Onde estavam os desejos, os sonhos originários? Para onde eu caminharia dali para frente?

Veio-me de repente uma inspiração. Queria continuar aquele momento de introspecção em algum lugar sagrado, que pudesse me ajudar nas minhas decisões de vida. Liguei para um amigo que continuava ativo na Igreja e lhe perguntei se sabia de algum lugar, de algum mosteiro, que aceitasse um peregrino por alguns dias. Ele me disse que talvez pudesse fazer algo do gênero na casa dos jesuítas em Itaici. Eu estranhei, porque achava que Itaici era um local apenas para os bispos da CNBB se reunirem, e que não teria outra finalidade. Mas não era assim…

Liguei para o telefone da casa e surpreendentemente ainda havia vagas para o próximo fim de semana, para um retiro espiritual. Sem saber muito bem o que seria isso, saí da praia, passei em minha casa de São Paulo, refiz as malas e rumei direto para a Vila Kostka, em Indaiatuba. Era o ano de 1993. Um momento para eu guardar para sempre, como no encontro de André com Jesus, após ter sido apontado por João Batista. Eram “quatro horas da tarde” e o Senhor me perguntou: “O que procuras?” (Cf Jo 1,38-40)

Eu não sabia bem o que procurar… Mas queria ficar junto de Deus! Em um primeiro momento, queria alguma resposta tanto sobre meu relacionamento afetivo, como também sobre minha vida profissional.  Só que, para minha desilusão, Deus não quis falar comigo sobre nenhuma destas duas questões… Ele apenas falou: “Vem e vê!”. E esta foi a tônica do meu primeiro retiro inaciano em Itaici. Ele me pediu para ficar junto com Ele! E eu fiquei!

Saí deste retiro transformado. Já tinha sentido no coração que era a melhor metodologia possível para a pessoa se encontrar a si mesma e com Deus, como depois soube que Inácio dizia. Minha concepção de fé e de Igreja mudavam significativamente.

Sem ter me dado as respostas imediatas que eu queria, Deus me deu a tranquilidade para resolvê-las no tempo certo, com os critérios certos. Mas, antes disso, iniciou em mim um forte movimento de conversão. Em tais momentos, as decisões e as experiências pessoais se sucedem rapidamente. Logo perguntei àquele meu amigo que tinha me indicado Itaici se ele conhecia alguma forma de continuar aquele tipo de espiritualidade, e ele me indicou a CVX – Comunidade de Vida Cristã. Nem um mês depois do Retiro eu já estava numa reunião da CVX, que se tornou a minha Igreja particular de pertença, onde permaneço até hoje. Alguns meses depois, fazia um retiro de carnaval, também em Itaici, em 5 dias que me marcaram a vida.

Eu estava aprendendo a fazer contemplações inacianas e achava ainda tudo muito difícil, afinal eu fui formado na escola da racionalidade médica, em que a imaginação não era desenvolvida. Mas desejoso da ação de Deus, desci até a Cripta da Igreja maior, num pequeno espaço ensolarado, aberto para o jardim. Tinha ficado naquele local quase uma hora, tentando meditar sobre o nascimento de Jesus. E nada acontecia. Quis terminar logo o horário de oração, mas lembrei de ser fiel ao tempo estabelecido. De repente, senti uma presença junto de mim. Era José que chegava, puxando um burrico, onde Maria ia montada, já envolta em contrações fortes. Ela reclamou de dores e pediu para o esposo descê-la do animal. Os dois se sentaram na minha frente e eu estremeci. Sabia, pelo meu conhecimento médico, que a criança estava para nascer. Comecei a escutar o que eles diziam. Maria disse para José que sentia que o menino estava para nascer e que precisariam de ajuda. José se desesperou: Onde iria achar alguém, naquele lugar isolado? Foi então que Maria primeiro e José depois me olharam. E me pediram se eu poderia ajudar… Eu?!… Logo eu?!… Mas se eu fizer algo errado, é simplesmente Jesus que vai nascer!… Não, não posso!… Então Maria virou-se para mim e me falou algo que guardo para sempre: “Sei que você é um bom médico! E eu confio em você!”

Sim, na minha primeira contemplação inaciana na vida, Deus quis me falar sobre a minha profissão! E permitiu que eu me sentisse fazendo o parto do próprio Senhor Jesus. Dali para frente meu jeito de atuar como obstetra se modificaria em essência! Muito frequentemente, a cena me vinha à lembrança novamente nos partos que eu assistia, principalmente quando a mãe era pobre e adolescente. Nas situações mais difíceis, em que eu sentia medo por não ter ainda experiência suficiente, a voz de Maria me vinha à lembrança e eu me acalmava. Passei a rezar a dezena enquanto me lavava para entrar em cirurgia. E acredito que não por acaso viria a ser o chefe do Setor de Gravidez na Adolescência do meu hospital. Passei a amar atender gestantes adolescentes do SUS. Naquele retiro de carnaval, minha acompanhante foi a Rose Vendramini que, ao final, pegou minhas mãos com carinho e dizia o quanto elas seriam especiais por terem feito o parto de Jesus. Até hoje, olho minhas mãos após a comunhão e as ofereço à Deus, através do meu trabalho.

Passaram-se outros 28 anos desde este meu início na espiritualidade inaciana. De lá para cá tenho feito retiros de 8 dias a cada 1 ou 2 anos, com regularidade. Fiz EVC (Exercícios na Vida Cotidiana) e CAP (Curso de Capacitação para Orientadores e Acompanhantes de Exercícios Espirituais), ajudando em Itaici e outros locais por diversas vezes. E aprendi não só a fazer as contemplações, mas também a fazer o discernimento inaciano, o qual tenho usado para praticamente todas decisões mais importantes na vida.

As primeiras decisões não foram discernidas na forma mais adequada, mas foram inspiradas por tudo o que acontecia comigo espiritualmente. Não me casei com aquela moça e decidi ficar no Hospital das Clínicas, primeiro como médico preceptor e depois como médico assistente, função que desempenhei por quase vinte anos. Tive altos e baixos na carreira, mas consegui fazer um caminho bonito. Fiz meu mestrado e depois meu doutorado e me envolvi cada vez mais com o mundo acadêmico, dando aulas de Obstetrícia para os alunos de Medicina. Paralelamente, continuava com o consultório particular, que foi se desenvolvendo aos poucos, com cada vez mais pacientes particulares. Em cada retiro que eu fazia, um ou outro aspecto desta minha atividade profissional foi sendo discernida e colocada à serviço, sendo explicitada como forma de missão. Neste sentido, a própria comunidade CVX sempre foi local de acolhida de inquietações e de auxílio, não só do discernimento, como também de apoio e acompanhamento da eleição que tinha feito. Assim, nos momentos difíceis de caminhada, de desânimo frente a obstáculos, sempre vinha a voz de algum companheiro de CVX me lembrando da opção feita anteriormente e da importância de manter a decisão prévia, quando feita em consolação.

Há cerca de dez anos, eu estava com uma posição confortável na vida profissional. Tinha superado várias dificuldades e me encontrava no auge da carreira dentro do hospital, onde eu acumulava as funções de Chefe da Enfermaria de Gestação de Alto Risco e Coordenador da Residência Médica em Obstetrícia. No consultório, estava também muito bem, com ganhos cada vez maiores, e reconhecimento das pacientes, que me encaminhavam cada vez mais seus familiares e conhecidos. Durante o percurso de formação profissional, na inquietação por fazer mais e melhor para as pacientes, tinha feito um curso de Introdução à Psicanálise e um outro de Homeopatia. Com tais recursos, me diferenciava na assistência médica prestada.

Mas eis que surge um concurso para uma vaga de docente na Faculdade de Medicina da USP, na minha área, Obstetrícia. Coloquei-me então em oração de discernimento, com o apoio de meu orientador espiritual e da minha comunidade CVX. Após rezar o tema alguns dias, senti que as moções me levavam a decidir pela candidatura à vaga na faculdade. Pesando prós e contras, havia mais perdas concretas do que ganhos, pois eu teria de me demitir do Hospital para ganhar menos como professor. Porém, no coração o caminho era outro. Na reflexão do maior bem que poderia fazer, que seria mais universal e mais necessário, tentar a carreira acadêmica ganhava destaque. Decidi-me pela carreira universitária e fui obtendo consolações de confirmação. Inscrevi-me na prova.

Eu era o mais velho dos três candidatos e pouca gente entendia por que eu largaria a chefia da Enfermaria para ser um professor que ganharia menos. Se não passasse seria um certo vexame… Mas fiz o meu melhor e, embora não tivesse o melhor currículo científico dos três, fui bem nas provas didáticas, conseguindo passar no Concurso em primeiro lugar, ficando com a vaga.

Minha vida mudava bastante com o novo cargo e, embora eu não tivesse isso muito claro no começo, a percepção da dificuldade foi ficando cada vez mais nítida. Eu era bom na didática, mas me faltava experiência e preparo adequado para ser pesquisador. Seguiu-se então um longo período de empenho e humildade, em que tive de aprender muita coisa nova, em termos de metodologia científica. No entanto, mais do que aprendizado, a nova função me exigia dedicação ainda vez maior.

Foi então que notei que deveria fazer um outro discernimento: para ter mais tempo para me desenvolver na Universidade, deveria refletir se não seria melhor fechar o consultório. Comecei então um processo de revisão da caminhada, recolhendo os sentimentos e moções do dia a dia e das minhas orações. Fui percebendo inquietação e irritação quando estava entretido em alguma tarefa ou projeto na Universidade e tinha de interromper para ir ao consultório. Comecei a colecionar momentos de consolação dando aula ou fazendo algum projeto científico. Parecia que a balança pendia para ficar em dedicação exclusiva na faculdade, em detrimento do consultório. Mas estava ainda com algumas dúvidas no coração e buscava algum sinal de Deus.

Eis que um belo dia minha secretária, que era também minha afilhada de batismo, aproxima-se de mim e diz para eu não ficar triste, mas que ela pensava em largar o emprego e imigrar para Portugal. Eu não fiquei triste, mas sim radiante! Deus acabava de me mostrar o caminho a seguir. Pois uma preocupação importante que eu tinha era em relação a esta minha afilhada, que dependia do emprego. Mais livre em relação a isso, finalmente me decidi pelo fechamento do consultório particular. E as consolações confirmatórias também se seguiram, incluindo uma rápida solução sobre o imóvel, que consegui alugar quase instantaneamente, sem nem precisar fazer o anúncio. Simplesmente, um interessado “caiu do céu”.

Na minha comunidade CVX de pertença, éramos em quatro professores universitários, que dividiam em suas partilhas as graças e os desafios da atividade docente, num país ainda tão injusto, desigual e com tão pouco reconhecimento aos professores. No começo de minha história profissional, nem sonhava em ser professor, embora tivesse o exemplo de minha mãe, professora do Ensino Fundamental. E me lembro claramente quando um dos meus chefes me disse, pela primeira vez na vida, que eu levava jeito para ser preceptor e professor. Eu respondi a ele com uma risada!… Mas, hoje, olhando para trás, vejo que Deus tentava me tocar o coração para esta missão desde aquele momento.

Fazendo minha “Teografia”, olhando como Deus foi desenhando a minha vida nestes anos todos, reconheço que todos os pontinhos que pareciam dispersos foram se agrupando no delinear de um belo desenho, em que todos os pontinhos – sem exceção – fazem sentido e me ajudaram a chegar onde estou.

Hoje sou realizado e feliz, na função discernida. Não que não existam dificuldades e maus momentos. Mas quando eles surgem penso que fazem parte dos espinhos, da cruz e do seguimento de Jesus. Penso, por experiência própria, que quando o discernimento é bem-feito, e sabemos por que fazemos o que fazemos, aguentamos resilientes os baques do dia a dia. E podemos oferecer as dores e as alegrias no altar, para maior serviço e glória de Nosso Senhor Jesus Cristo. É o que eu faço, em todas as celebrações eucarísticas que participo, há quase três décadas.

Espero, outrossim, que este meu testemunho possa ajudar outros a encontrarem seu caminho no seguimento de Jesus. Eu aprendi que a fé juvenil não é para ser esquecida, como se a vida adulta profissional não pudesse ser compatível com uma fé adulta. Ela pode e deve! Ademais, quero dizer que a espiritualidade inaciana foi essencial para este meu processo de leigo, casado e profissional, que tenta unir fé e vida em todos os momentos.

Ser contemplativo na ação, no dia a dia, é um caminho de realização humana. E não acho que possa ter algo melhor na vida!


Marco Aurélio Knippel Galletta é leigo, médico obstetra e professor universitário, pertencente à Comunidade de Vida Cristã (CVX), comunidade CVXavier, São Paulo (SP).

CVX: Uma Vocação

Imagem: Isamu Araki (1947- ). Vida, 1998. Enciclopédia Itaú Cultural.

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

3 comentários Deixe um comentário

  1. Que bonito ver a busca de sentido, de realização na sua vida e o processo de reconhecimento do amor de Deus e sua abertura à ação dEle ao longo do tempo!
    Obrigada por compartilhar conosco, Marco Aurélio!

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  2. Querido Galletta,
    Sua partilha alimenta meu coração e aparece como um bálsamo. Perceber a ação de Deus em nossa vida – até mesmo nos momentos difíceis-, e ver como os pontinhos se conectam nessa trajetória são, para mim, provas concretas de que Ele sempre está presente.
    Que bom que você deu corpo ao seu desejo. Hoje seu desejo é sua vida! E quantas vidas você vem trazendo à luz!! Em seu trabalho como Médico, como Professor e também por meio de sua presença sempre amiga! Que muitos outros pontinhos venham a compor seu belo quadro! São pinturas como essa que nos remetem ao amor do Criador!

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  3. Obrigada Marco por esse depoimento teografico, tocante, sincero, aberto, autêntico, corajoso e generoso. Nota-se que colocou seu coração nas palavras e venceu a si mesmo … Gratidão foi edificante ler.

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