Jerusalém: uma “praça da alimentação”

Semana Santa Orante 2023

Pe. Adroaldo Palaoro, SJ

Quando Jesus entrou em Jerusalém a cidade inteira se agitou, e diziam: Quem é este homem?


Jesus participava do sonho de todo o povo de Israel que via em Jerusalém a cidade da promessa de paz e plenitude futura, lugar da acolhida, ambiente fecundo onde ninguém passaria fome, pois todos teriam o direito de participar da “grande mesa do pão”. A tradição profética havia anunciado uma “subida” dos povos, que viriam a Jerusalém para iniciar um caminho de comunhão e justiça e adorar a Deus no Templo, que estaria aberto para todos. Toda a cidade se converteria num grande Templo, lugar da inclusão e da partilha, onde se cumpririam as esperanças dos povos.

Com sua entrada em Jerusalém, Jesus quis recuperar a cidade como lugar do encontro e da comunhão, como espaço da paz e da solidariedade…, desalojando aqueles que se fechavam a qualquer tentativa de mudança. Por isso, seu gesto provocativo e escandaloso de entrar na cidade montado num jumentinho, símbolo da simplicidade e do despojamento de qualquer pretensão de poder e força, causou violenta reação naqueles que se beneficiavam da estrutura política e religiosa da cidade.

Jesus entrou em Jerusalém rodeado pelo povo simples. Este povo, escravo e oprimido, o aclamou porque viu n’Ele uma luz de esperança, de vida, de libertação; escutou seus ensinamentos e viu seus feitos durante alguns anos; sentiu-se tocado pelas palavras de vida, de justiça, de amor, de misericórdia, de paz…

Também viu seus gestos de cura dos enfermos, de defesa dos fracos, de oferta de alimento aos famintos, de reabilitação dos desprezados, de acolhimento dos marginalizados, de denúncia dos opressores…

Jesus quis continuar anunciando e realizando na cidade de Jerusalém aquilo que fizera na região excluída da Galileia; quis também humanizar esta cidade para que ela fosse sol de justiça e paz para todos os povos.

Esta é a cidade que Deus deseja: uma praça da alimentação, uma mesa celebrativa para todos. A praça é de todos e todos podem ter acesso a ela, todos podem circular livremente, criar relações e convivência, fazendo a experiência de serem aceitos e reconhecidos como humanos. 

A mesa, no centro da praça, é lugar de hospitalidade, de festa e de memória, lugar da partilha do pão e dos frutos da terra. Ali ninguém passa fome.

Compartilhar a mesa é o grande símbolo da convivialidade, da reconciliação e da inclusão. O ritual da mesa rompe as distâncias e garante a proximidade, estabelece o estreitamento dos vínculos com o diferente. Junto à mesa, cada um se coloca diante do outro, não importando as diferenças de vida, de opções. A comunhão acontece por meio de um gesto que não é de poder, mas de esvaziamento, não é de apropriação, mas de partilha, não é de fechamento, mas de abertura das mãos que acolhem, que distribuem…

A mesa da refeição se torna lugar de humanização do ser humano. Espaço de verdadeira reserva de humanidade. Muitos são aqueles que sabem abrir as mãos, partir o pão, saciar a fome do irmão.

Com o gesto do “re-partir” se estabelece uma rede de relações entre as pessoas que aceitam conspirar, co-inspirar, o mesmo ar, o mesmo sonho, a mesma causa.

E nada fica como estava… encantamento que faz ressuscitar a vida que já estava morta; refeição que transforma os desertos em mananciais de água.

Fazer memória da entrada de Jesus em Jerusalém pode ser uma ocasião privilegiada para transitarmos por nossa Jerusalém interior, um bom espaço onde encontrar a nós mesmos, identificar-nos com os diferentes personagens e sentir-nos parte daquela história. O relato da Paixão de Jesus revela ser também a história de cada um de nós. Porque, afinal de contas, é uma história que aconteceu no passado e continua acontecendo também hoje em nossa interioridade. E é a partir do hoje que nós temos de vivê-la, numa atitude contemplativa. E é a partir de nós, e não a partir daqueles personagens de então, que teremos de assumi-la.

Vamos, então, com Jesus montado num jumentinho, transitar pelas ruas de nossa Jerusalém interna, reconhecendo os diferentes personagens que ali atuam e que significam diferentes atitudes vividas por cada um de nós. Cada personagem do evangelho é um espelho onde nos vemos.

Jerusalém não é só uma cidade geográfica, situada na Palestina. Domingo de Ramos nos motiva a fazer o percurso em direção à nossa Jerusalém interior. Mas, para descer em direção a esta cidade é preciso despojar-nos da vaidade, do prestígio e do poder, montado no jumentinho da simplicidade.

Nossa Jerusalém interior é também lugar das contradições e ambiguidades; ali dentro experimentamos a trama de relações conflitivas, ali nos deparamos com as angústias, carências e dúvidas…

É preciso cuidar o coração da nossa “Jerusalém interior”, esvaziá-lo, limpá-lo, aquecê-lo, transformá-lo em humilde e acolhedor espaço, para que o Espírito do Senhor possa aí descer e habitar, transmitindo-lhe vida, luz, calor, paz, ternura…

É preciso voltar a pôr o “coração de Deus no coração de nossa Jerusalém”. Faz-se necessária uma opção corajosa, como Jesus, para entrar e estar no interior de nossa Jerusalém, para aí descobrir o verdadeiro coração de Deus, que pulsa no ritmo dos excluídos, dos sofredores, dos sedentos.

A Campanha da Fraternidade deste ano quer despertar em nós uma sensibilidade solidária com aqueles que são vítimas de uma estrutura social e política que concentra os bens nas mãos de poucos, de maneira especial os alimentos. “Fraternidade e fome” denuncia a vergonhosa chaga social dos famintos em um país que é grande produtor de alimentos. A fome clama aos céus e ressoa em nosso coração; ela é expressão de uma profunda incoerência dos cristãos que se dizem seguidores d’Aquele que veio multiplicar os alimentos. Estamos muito distantes das primitivas comunidades cristãs que “tinham tudo em comum, partiam o pão pelas casas com alegria e simplicidade de coração” (At 2,46).

Nosso coração deve se revelar como “praça da alimentação”.

O lema da Campanha da Fraternidade deste ano – “dai-lhes vós mesmos de comer”nos revela que nosso interior é uma reserva de “alimentos humanizadores”: compaixão, desejos nobres, dons originais, criatividade, espírito de busca… São alimentos que plenificam e dão sabor à nossa vida. É preciso extraí-los e multiplicá-los para que a fome de sentido e de esperança das pessoas seja saciada. Ninguém tem o direito de armazenar nos seus celeiros o “trigo” doado por Aquele que é fonte de todo “alimento salutar”. Afinal, alimento guardado é alimento que apodrece. Vida partilhada é vida abundante.

“Dai-lhes vós mesmos de comer”: este apelo nos inquieta, ativa nossa sensibilidade e nos faz ampliar a visão em direção à grande multidão de famintos, presentes em nossas cidades: famintos de alimento, de proximidade, de justiça, de comunhão, de afeto…

Para Jesus, uma humanidade constituída por nações, cidades, instituições ou pessoas comprometidas em alimentar os famintos, vestir os desnudos, acolher os imigrantes, atender os enfermos e visitar os presos, é o melhor reflexo do coração de Deus e a melhor concretização de seu Reino.

Esta é a utopia do Reino; tudo está reconciliado: o cosmos, com a natureza verde e em paz; os produtos do trabalho humano, da generosidade do mar e da terra; e as pessoas, numa relação harmoniosa entre elas mesmas e com Deus, sem exclusões, competições nem privilégios. Isto é possível porque todos se deixam afetar pelo dom do mesmo Reino que cresce já no coração de todos.

Texto bíblico: Mt 21,1-11

Na oração: procure descobrir os sinais do Reino de Deus no meio da aparente confusão de sua Jerusalém interior: lugar da partilha? espaço aberto e acolhedor?…

– Como re-criar, no coração da cidade interior, o ícone da Nova Jerusalém, a cidade cheia de humanidade e comunhão, o lugar da justiça e fraternidade?

– Você já parou para pensar na abundância de recursos e nutrientes em seu coração e que poderia compartilhar com os outros? Em seus celeiros interiores há abundância de alimentos que humanizam.

– “Diga-me como você habita sua cidade interior e eu lhe direi como é sua presença no seu espaço urbano”.

Texto bíblico: Mt 21,1-11

Jesus e seus discípulos se aproximaram de Jerusalém e chegaram a Betfagé, perto do monte das Oliveiras. Então Jesus enviou dois discípulos, dizendo: “Vão até o povoado que está na frente de vocês. E logo vão encontrar uma jumenta amarrada, e um jumentinho com ela. Desamarrem e tragam os dois para mim. Se alguém lhes falar alguma coisa, vocês dirão: ‘O Senhor precisa deles, mas logo os mandará de volta.’ ” Isso aconteceu para se cumprir o que foi dito pelo profeta: ‘‘Digam à filha de Sião: eis que o seu rei está chegando até você. Ele é manso e está montado num jumento, num jumentinho, cria de um animal de carga.” Os discípulos foram e fizeram como Jesus tinha mandado. Levaram a jumenta e o jumentinho, estenderam os mantos sobre eles, e Jesus montou. Uma grande multidão estendeu seus mantos pelo caminho; outros cortaram ramos de árvores e os espalharam pelo caminho. As multidões, que iam na frente e atrás de Jesus, gritavam: “Hosana ao Filho de Davi! Bendito aquele que vem em nome do Senhor! Hosana no mais alto do céu!” Quando Jesus entrou em Jerusalém, toda a cidade ficou agitada, e perguntavam: “Quem é ele?” E as multidões respondiam: “É o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia.”


Adroaldo Palaoro é padre jesuíta, atua no ministério dos Exercícios Espirituais.

Semana Santa Orante — 2023

Ano A — Domingo de Ramos


Imagem: Luís Henrique Alves Pinto

Padre Adroaldo Palaoro, SJ Palavra de Deus

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

2 comentários Deixe um comentário

  1. Eu me alegro muito com esta celebração da semana Santa. São ápces de nossa fé. O contentamento que sinto,leva me ao auge, maravilhado com a certeza de que um dia estaremos unidos. Não, que já não podermos sentir sua presença forte e acolhedora, mas presente, em espírito e verdade.

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