Revisão diária e qualidade de vida
Marco Aurélio Souza
Entre tantos ensinamentos que a espiritualidade inaciana nos proporciona, quero destacar nesta partilha, a dinâmica da revisão diária.

Antes de entrar na abordagem inaciana, partilho que num retiro que fiz com Frei Patrício Sciadini, ele dizia que a qualidade de vida de uma pessoa muda quando, ao iniciar o dia, ela vê o que está programado para ocorrer naquele dia e o coloca nas mãos de Deus. E disse ainda: na maioria das vezes sabemos muito bem o que vai ocorrer no dia que se inicia, ou seja, uns 80% são fatos previsíveis. E, olhar tudo numa dinâmica de vida e prever quantas oportunidades teremos naquela data, altera nossa qualidade de vida.
E isto é verdade. Quem não fez, experimente! O dia passa com menos surpresas e os fatos agradáveis a gente se apropria melhor e os fatos desagradáveis, já sabidos que irão acontecer, já iremos mais preparados. A qualidade de vida muda!
Bem, unindo este ensinamento do Frei Patrício à revisão de vida que Santo Inácio nos ensina, para mim, tem sido um aprendizado muito rico que me dá sentido à vida e, como disse o Frei, qualidade do dia a dia, mesmo com tantas dificuldades que possam ocorrer.
Minha experiência, que não é modelo, mas apenas uma das formas que encontrei para assim fazer e me apaixonar por este meio, é antes de buscar os possíveis traços de Deus na vida, simplesmente rever o dia que passou, o que ocorreu, seguindo a ordem cronológica dos fatos. Em seguida, faço “o dia de hoje”, na dinâmica como descrevi acima, aprendido pelo Frei Patrício. E, num terceiro momento – que coloquei o nome “pontos”, mas que poderia ser qualquer outro nome – revisto o dia anterior, passo a destacar quais foram as emoções e as experiências que mais me chamaram atenção do ocorrido.
É incrível quando estou neste terceiro momento, como é comum destacar um sorriso de alguém, um abraço de alguém, um beijo do filho, uma palavra ouvida ou mesmo uma cena que me entristeceu, e perceber o que me entristece, o que me alegra, o que me dá prazer, o que me dá raiva, e assim sucessivamente. Parece que estou escrevendo uma carta ao Pai e, na grande maioria das vezes, neste terceiro momento eu termino com um agradecimento, pois é raro o dia em que não vejo algum sinal de algo que devo gratidão.
Também tem momentos de sentir-me pobre, diante de situações que nada pude fazer, ou que podia e nada fiz. Ou que me sinto limitado quando me deparo com realidades em que, mesmo se agisse com minha totalidade, não teria alguma eficiência naquela situação. Também me sinto amado quando sou presenteado com gestos, palavras acolhidas. Enfim, são muito aprendizados.
E, durante o dia, quando algo maior acontece, logo me vem a cabeça: “isto vai para a revisão”.
É interessante como isto passa a fazer parte da vida, como alimentar-se, descansar, etc… Enfim, este exercício diário para mim hoje não é mais possível ficar sem fazê-lo. Na minha oração do dia a dia, após ter feito esta experiência, daí vou para o texto do dia e a reflexão.
E, incrível como muitas vezes (muitas mesmo!) algumas das coisas que reclamei na revisão me são respondidas na reflexão do texto. Para mim não é coincidência, mas são conexões que o Pai faz em nossas vidas para dar provas inquestionáveis de que Ele está conosco.
Alguns chamam isto de “teografia”, e pode ser mesmo; no entanto, num momento de retiro ou encontro com tempo maior, olhar uma parte da nossa vida nos dá uma visão melhor da teografia, ou seja, as “pegadas” de Deus na nossa caminhada. Gosto de chamar “teografia” quando é feito num momento com tempo maior. Mas, no dia a dia, prefiro chamar de revisão e olhar com certo cuidado os detalhes, as peculiaridades, as marcas discretíssimas de Deus no nosso dia a dia.
Na verdade, não se trata de buscar coisas maravilhosas no nosso dia a dia, mas perceber quantas coisas aparentemente pequenas são maravilhosas que aconteçam na nossa vida. Um texto, uma música ouvida, uma cena, um fato; enfim, durante nosso dia é quase impossível nada ocorrer que não nos chame atenção.
A dinâmica da vida não deveria nos permitir passar dia após dia como se fosse simples repetição de calendário ou rotina. Na verdade, quando entramos nesta dinâmica da revisão diária, parece que a rotina não existe, pois por mais parecido que possa ser um dia após o outro, cada um tem seu significado especial, suas surpresas, suas próprias alegrias e tristezas.
Outro ponto que normalmente nos ajuda muito diante desta prática, é corrigir rotas durante o dia. Sim, porque às vezes aparecem coisas que não estavam programadas e precisamos ter discernimento instantâneo para decidir diante desta “novidade” que está aparecendo no momento. E, com a prática da revisão, parece que somos mais responsáveis ao decidir mudar alguma coisa que estava programada para abraçar outra que apareceu sem planejar.
Assim, dar atenção a um fato novo, um convite, um chamado, algo que “sai da normalidade” é fundamental sabermos escolher bem para, no dia seguinte, olharmos e verificarmos que fizemos o melhor caminho. Mas, também é verdade que, quando nem sempre optamos pelo melhor caminho, na revisão isto aparece como ensinamento a ser levado para futuros momentos.
Lembro-me de um amigo que, doente, queria ver-me e eu fui deixando para depois e ele foi a óbito. Na revisão, no dia seguinte, o que me veio para fazer foi colocar uma nota na minha rede social intitulada mais ou menos assim “nem sempre fazemos o que ensinamos”. E, não sei se ajudou alguém, mas a mim foi um grande aprendizado.
Termino partilhando um aprendizado que tive num curso, onde me foi ensinado que não devemos priorizar nossa agenda, mas devemos agendar nossas prioridades.
E, parece simples, mas não é. Parece óbvio, mas não é. O corre-corre do dia a dia nos quer raptar numa roda viva, como diz Chico Buarque na música Roda Viva: “na volta do barco é que sente o quanto deixou de cumprir”.
Particularmente, eu sinto que a sociedade atual está trocando viver as coisas com profundidade por viver muitas coisas sem profundidade. E Santo Inácio já nos ensinava que “não é o muito saber que sacia e satisfaz a pessoa, mas o sentir e saborear as coisas internamente” (EE 2,4).
Ou saboreamos as coisas do dia a dia ou a roda viva nos leva para onde dificilmente terá volta.
Marco Aurélio Souza é leigo, pertencente à Comunidade de Vida Cristã (CVX), Movimento Cristão Libertador (MCL), Jacareí (SP).
Imagem: Gilberto Salvador (1946-). Voo Norteado, s.d. Enciclopedia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira.
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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.
Obrigada por deixar tão claro a importância de revisão diária na nossa vida!
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