Sou uma pessoa feita de silêncios
João Carlos Pereira
A trilha sonora de minha vida é limitada e melancólica. Minha vida também é melancólica, mas, graças ao bom Deus, não quer dizer infeliz. Sendo assim, não poderia ter sido embalada por ritmos animados. Minhas músicas são aquelas que escuto em baixo volume, de preferência sozinho, dirigindo numa longa estrada. Música e solidão são complementos de minha alma.

Também gosto de quadros, cuja imagem pintada não tenha a definição de uma foto. Por isso amo os impressionistas. Por isso amo aquarelas. O geometrismo me agrada bastante, justamente por enquadrar as formas e, ao mesmo tempo, desintegrá-las. Ou desenquadrá-las. Prefiro pinturas que me permitam trafegar, incógnito, por entre suas cores e ausência de formas definidas. Não conheço quem tenha se sentido acolhido pela Mona Lisa, mas sei de um monte de gente que atravessa a ponte do jardim de Giverny, olhando apenas para uma tela de Monet.
Renoir não gostava de expressar a tragédia da vida em suas telas. Para ele, já bastava a tragédia da vida. O mundo não precisava de sua arte para se revelar como era de verdade. Nos seus quadros, a existência aparecia de forma suave. Modelos esculturais viravam mulheres volumosas. O filho era inspiração para desenhar meninas. Peço que não me acusem de gordofobia, nem de nenhum outro tipo de fobia. Estou falando apenas dos gostos de Renoir e de nada mais.
Graças a Deus aquela senhora, que parece não ser afeita a visitar museus, não se lembrou do quadro “Rosa e Azul”, do Masp, para justificar que menina usa rosa. Ao lado da miúda de vestidinho rosa, há outra trajando azul. Já pensou o estrago? O mínimo que ira dizer é que a criatura era comunista.
Mario Baratta, um dos maiores aquarelistas do país, meu amigo-irmão, me contou que não gosta de ser pessimista em arte. Sua obra é tão delicada quanto a essência que o habita, plena de juventude e eternamente apaixonada.
A “Guernica”, de Picasso, é um brado contra a guerra e a violência. O painel virou um símbolo da luta pela liberdade. Uma vez, militares perguntaram-lhe se ele mesmo havia feito “aquilo”. Serenamente, respondeu: “Não fui eu. Foram vocês”.
Manuel Bandeira confessou, corajosamente, que não fazia versos de guerra porque não sabia. Eu, que não sei pintar, compor ou escrever versos, não passo de um cronista que gosta de flores, de passarinhos, de estrelas, da minha religião católica, de comida simples, da vida simples e de Paris. Não é contraditório gostar de Paris, quando falo de simplicidade. A Paris que eu amo não é a turística. É a que protege minha alma, quando não suporto o peso da vida. É a cidade que trago em meu coração. Não é a Paris do Louvre ou da Torre. É a Paris das pequenas ruas, das feiras, da vida normal, comum, sem turistas.
Nunca me meti em política porque só ando sobre terras que conheço. Prefiro gostar das pessoas aos cargos que, eventualmente, ocupem. Prefiro minha sacada e a dos amigos a uma mesa no melhor restaurante. Não dou um passo para além do jardim. Perdoai.
A trilha sonora da minha vida tem a solidão da seiva correndo, invisível, dentro dos troncos das árvores, do canto dos grilos, dos sapos coaxando. Preserva o dobre de sinos e os ecos do órgão de uma velha catedral.
A trilha sonora da minha vida é o silêncio.
Belém, 14 de setembro de 2020.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Mário Baratta — Série Vestígios, Praça Batista Campos. 2011.
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