Amor de irmãos registrado numa sepultura, em Santarém

João Carlos Pereira

José Wilson Malheiros da Fonseca é um amigo precioso. Fomos colegas na Unama e na Justiça do Trabalho, com a enorme diferença de que ele era Juiz e eu, assessor da Presidência do Tribunal. Nos reencontramos na Academia Paraense de Letras e, além de confrades, nos transformamos em irmãos. E não é pelo fato de que, mesmo aposentado, ainda possuir a chamada “fé pública”, ou seja, o que ele diz não carece de comprovação, que eu deveria acreditar em tudo que conta. Mas acredito. Ele é diácono permanente da Igreja Católica e posso garantir que se trata de um homem de coração puro. O que me contou é de conhecimento geral, sabido por todo mundo, em Santarém, sua terra natal e também de seu pai, o maestro Isoca. O fato é de tal modo inusitado e, de certo modo, macabro, que vale a pena compartilhar.

No Cemitério de Nossa Senhora dos Mártires, o mais antigo de Santarém, há uma sepultura bonita, a 10 metros do portão, lado direito de quem chega, a bem dizer na entrada, que chamava atenção de todo mundo. Nela existem dois medalhões com fotografias. A de um morto e de uma viva. O morto estava nessa condição havia mais de quatro décadas e a viva ansiava pela morte a cada dia. Como José Wilson soube desse história quando era menino e já passou dos setenta, é só fazer as contas para imaginar que o que vou narrar tenha se dado no começo do século XX.

Eram os irmãos João e Carmen Hage, ambos solteiros e, pelo que ouvi, dá para imaginar que o amor entre eles só não era maior que a poeta portuguesa Florbela Espanca devotou ao irmão, Apeles, morto num acidente de hidroavião, pilotado por ele próprio.

A vida de Florbela foi marcada por tristezas e tragédias. Estudou Direito, nos anos 20, e sonhava com a liberdade, num Portugal tremendamente machista. Vivia intensamente cada paixão. A última foi por advogado chamado Ângelo César. Na noite de 7 de dezembro de 1930, véspera de seu aniversário, avisou ao marido que não desejava ser incomodada por nada. Às duas da madrugada, exatamente na hora em que nasceu, conseguiu, enfim, morrer. Era a segunda vez que tentava o suicídio. Encheu-se de barbitúricos e se finou no preciso instante em que completava 36 anos. Florbela era linda e eu gosto tanto dela, que por um minuto me esqueci da tragédia de João e Carmen Hage.

No dia em que o irmão morreu, ela o sepultou no lindo túmulo mandado construir para os dois. Como era costume da época, chumbou uma foto do falecido e, ao lado, a sua. Carmen viveu ainda mais 40 anos a saudade do irmão. Constantemente ia levar flores para ele e, quem passasse por ali, veria uma viva colocando flores no túmulo de outra viva. No caso, ela mesma.

Imagino que muita gente deva ter passado por lá e, imaginado ver uma visagem, aos pés da própria sepultura, saiu em desabalada carreira. Ela fez isso por 40 anos, até que a morte a levou para junto de seu amado irmão.

Quando soube que foram quatro décadas de uma relação maluca, me lembrei imediatamente de Petrarca, sim Francesco Petrarca, o poeta que nasceu em Arezzo, no já muito distante ano de 1304, foi grande amigo de Bocaccio, embaixador e reinventor do soneto clássico. Consta que participou da primeira tradução latina de Homero e, em 1345, teria descoberto uma coleção inédita de cartas de Cícero. Apenas isso teria feito dele um grande homem, mas a paixão entrou em sua literatura por uma porta proibida e muito ajudou para a ser coroado, em Roma, com a laurea poetas.

Na sexta-feira santa de 1337, na Igreja de Santa Clara, em Avignon, teve a visão do esplendor. Ela atendia pelo nome de Laura. Poderia ter sido Laura de Noves, esposa de Hugues de Sade, um ancestral do Marquês de Sade, de cujo sobrenome teria iniciado a palavra sadismo. A paixão foi arrebatadora. O problema é que era casada. Dizem, sempre dizem, que os dois tiveram pouquíssimo contato. Laura era, segundo Petrarca, linda, de cabelos claros, uma moça modesta e tímida.

Não tenho inocência suficiente para acreditar no platonismo desse amor. Aliás, acredito em pouca coisa e em coisas de amor romantizado, menos ainda. Mas é certo, ou quase certo, que Petrarca também sobreviveu 40 anos à morte de Laura e, ao longo de todo esse tempo, ia, diariamente, levar flores para sua amada e as depositava sobre o túmulo. Quando o viúvo aparecia no cemitério, sempre achava a sepultura enfeitada. Para mim, esse Hugues foi corno em apenas dois momentos: quando casado e viúvo.

A história de João e Carmen Hage não possui uma gota de romantismo, nem ingredientes heróicos, nem coisa nenhuma. Uma relação tão sem sal, que só mereceu registro porque Zé Wilson se lembrou dela. Sua mãe o levava ao cemitério e, ao ver a sepultura, falava do ocorrido.

Gosto de pensar que histórias entram por uma porta e saem por outra. Esta entrou na infância de José Wilson Malheiros da Fonseca e saiu pela janela desta crônica, para ganhar mundo. Esse mundo tão maluco, que, como se diz por aí, o diabo é quem duvida de qualquer coisa.

Eu não duvido de nada. Muito menos do amor.


João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.

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Imagem: Ismael Nery — O Luar (Dois Irmãos), 1925. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.

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