Aborto

Luciano Fazio

Após que populares contra o aborto invadiram o hospital onde uma menina de 10 anos vítima de estupro iria realizar um aborto legal, cabe refletir o acontecido. De um lado, há inconformidade com a intolerância. De outro o reconhecimento da gravidade do assunto “aborto” e da necessidade de soluções para o problema.

Discordo da afirmação: “O corpo é da mulher e ela faz dele o que melhor entender”. Isso significa negar o problema, desconsiderando que há outra vida em jogo, além daquela da mulher.

Mas cabe perguntar “Quando inicia a vida de uma criatura no ventre da mãe?” e “Até que ponto a sociedade pode se omitir diante da violência contra a mulher?”, sabendo que pode haver violência, mesmo sem o ato do estupro. A escassa assistência às mães solteiras bem como os casamentos sem amor, mas somente para solucionar o problema, são outros exemplos de violência.

Não se pode esquecer as causas do problema: a gravidez não planejada e indesejada como consequência da falta de educação sexual e da negação da sexualidade como dimensão humana.
No debate do assunto, a grande referência é o princípio ético (e religioso): “Não matarás”.

Observe-se, contudo, que, em outras circunstâncias, a sociedade interpreta tal princípio de forma pouco radical. Por exemplo, a pena de morte é comum em vários países ocidentais. Ao contrário do início da era cristã, o homicídio é justificado em tempos de guerra (e não apenas o dos soldados, mas também de civis). Ainda, o senso comum tolera o assassinato em defesa da propriedade. Ou seja, a definição do que seja justo ou errado não depende apenas dos princípios, mas também da cultura e de pactos da sociedade acerca de suas práticas. Parece que a matança é legitima quando realizada na luta pelo poder e na defesa da propriedade, enquanto a vida da mulher tem menos valor.

Voltando ao tema do aborto, para mim como cristão, a dimensão principal é a capacidade de ser solidário com quem está em dificuldade, na busca de uma saída que leve o outro para uma vida mais digna de ser vivida, sem mais dor e injustiça. O problema que leva ao aborto (drama humano que ninguém vive de coração leve) não é solucionado por lei e juízes que condenam, mas por medidas preventivas ou, quando essas não aconteceram, pela capacidade de se fazer próximo das vítimas, visando à superação do problema e do sofrimento. Como fazer? Não há receitas de bolo. Não se pode amar o outro sem conhecê-lo, sem convivência, sem escuta, sem respeito…

Significativamente, nas catacumbas de Roma, a imagem mais comum de Jesus não é a da cruz, mas do Bom Pastor que deixa o rebanho inteiro para buscar a ovelha perdida (aquela que passa por momentos difíceis) para ser trazida de volta (e não castigada). Quando a mulher foi apanhada infringindo a lei, ele disse: “Quem estiver sem pecado, jogue a primeira pedra” e, depois que os acusadores se foram cabisbaixos, acrescentou: “Vá em paz, eu também não te condeno”.

Para mim, a solidariedade implica também a corresponsabilidade por situações sociais, que posturas fundamentalistas simples e covardemente jogam nas costas das vítimas, que se tornam vítimas duas, três, quatro… vezes. Em lugar de serem ajudadas.

De acordo com são Paulo, para os seguidores de Cristo, a lei não salva, mas sim o amor. Em lugar de fazermos cruzadas para matar os infiéis, somos chamados a agir como Jesus, que nos revelou o rosto misericordioso de Deus, como Francisco que diz:

Onde houver ódio que eu leve o amor, onde houver tristeza que eu leve alegria…


Mesmo eu que não estuprei, não neguei a educação sexual aos meus filhos, não provoquei diretamente o problema, não posso dizer: “Eu não tenho nada a ver com isso”, e cometer o erro de Caim que, questionado sobre a sorte de Abel, responde “Eu não sou o guardião do meu irmão”.

Estou cheio de dúvidas. De um lado, cada aborto me machuca e o vejo como uma derrota minha e da sociedade. Por outro lado, a solução não está na lei que simplesmente proíbe e pune. Não se pode crucificar a mulher como se fosse um monstro assassino e não uma vítima de uma situação, que reflete problemas de toda uma sociedade. A resposta ao desafio vem de outra abordagem à sexualidade e da capacidade de ser próximo de quem sofre, enquanto são buscadas melhores soluções.

A descriminalização do aborto é uma espécie de trégua para que sejam encontradas soluções mais humanas e cristãs ao problema e que evitem essa prática.


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Aborto: problema moral e político

Imagem: Isamu Araki — Vida, 1998. Enciclopédia Itaú Cultural.

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

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