Tempo de intensidade espiritual

Caminhada Inaciana 2020 – Quarto Pouso

Como este tempo de vácuos, ausências, silêncios, distâncias, em que tudo nos falta, poderia ser tempo de intensidade espiritual?

Ora, uma coisa sabemos: vínhamos vivendo um tempo de sonambulismo existencial. Tudo muito automático, sem lugar para o encontro, sem tempo para o transcendente, sem espaço para uma vida interior…  Acreditando que só existe uma forma de fazer as coisas, que só há uma forma de presença, que todas as ausências são iguais…

No entanto, quando veio a pandemia algo novo rugiu dentro de nós, cheio de busca e de desejo, e nos permitiu sentir que a vida não se esgota no momento, nos nossos jogos quotidianos…nosso rugido nos faz intuir que ela tem uma respiração muito mais profunda, muito mais intensa, que se desdobra em mil novos horizontes que antes não vislumbrávamos.

Sobretudo espiritualmente, pois começamos a viver como numa sexta-feira santa, em que o altar está nu, o sacrário, aberto e vazio, tudo imerso em silêncio, em uma tonalidade de abandono… 

Nossa religião que, no tempo da abundância, era, tantas vezes, epidérmica, superficial, em que tudo nos era oferecido sem esforço, quase uma expressão de consumo, tornou-se dolorida, desnuda, que nos faz prostrar em nossa indigência, em nossas necessidades não satisfeitas, como crianças perdidas na noite… É uma experiência radical, de grandes exigências: como não seria intensa?

Este é um tempo de intenso desejo de Deus. É um tempo de imensas saudades de Deus.

Será que poderíamos viver intensamente do desejo de Deus? Poderíamos beber da nossa sede de Deus?

Poderíamos tocar a Deus com nossas saudades dele?

Isso, provavelmente, é algo que muitos de nós jamais haviam experimentado. Mas sim, podemos.

Ninguém deseja o que não conhece. Mas nós, quando sentimos saudades de Deus, quando temos sede de Deus, desejamos o que conhecemos, porque ele já está dentro de nós. Lá, de dentro, ele nos diz: “há tanto tempo estou entre vós e ainda não me conheceis?” Lá, de dentro, ele nos diz: “se alguém me ama, eu e meu Pai viremos e faremos morada nele!”

Nestes dias, não podemos comungar, por exemplo. Mas quando vivemos o momento da comunhão na missa remota como um absoluto vazio, em que o desejo de Deus chega a doer, é como se um poço se abrisse diante de nós e bebêssemos de Deus nesse desejo, como se nos saciássemos de nossa própria sede…

Desejar Deus é experimentar Deus em sua própria aparente ausência. Sentir saudades é tocar com a ponta da alma o coração do Senhor, que amamos.

Não seria então, também, o tempo de fazer a mais espantosa, radical e intensa experiência de, em nossa saudade de Deus, viver de Deus e de Deus só, transcendendo toda a forma e aparência, buscando-o em nossa sede, em nosso desejo, em nossa saudade, e encontrando-o sem véus no mais íntimo de nós?

Como se vivêssemos um êxodo desafiador e, não importa onde, Deus é o ponto de chegada.

Como se vivêssemos uma gestação heroica e, não importa quão longos e cinzentos sejam os dias, algo treme dentro de nós e diz: vai nascer!…

Paradoxalmente, agora, encontrando-o em nosso desejo, podemos dizer, com santo agostinho: “tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei!

Eis que estavas dentro, e eu, fora. Estavas comigo, e eu não estava contigo…

É neste tempo de indigência que poderemos viver a intensidade da mais íntima experiência de Deus, lá no mais profundo de nosso coração. Sussurrar: “se não falares, prolongarei o teu silêncio e o amarei!”

Este é o tempo em que poderemos cantar: “ó tu, mais além de tudo, qual espírito pode te conter? Todos os seres te celebram, todos os desejos aspiram por ti!


Caminhada Inaciana 2020
Introdução
1º Pouso | 2º Pouso | 3º Pouso | 4º Pouso | 5º Pouso

Imagem: Tikashi Fukushima — Brisa da tarde, s/d. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

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