O menino feito de incompletudes começa a se despedir
Diário de um desespero – ou quase – XC
João Carlos Pereira
Nem sei como consegui chegar à nonagésima crônica de uma série que julgava teria pernas curtas e vida breve. A pandemia prossegue e o isolamento, também. Não quero ser arauto do pior, mas acho que isso não vai passar tão cedo. Na Lombardia, na China e na Espanha uma segunda onda se anuncia. Por aqui, tenho a sensação de que um movimento semelhante ao da formação da vaga gigante, provocada pelo recuo das águas, virará tsunami. O povo está vendo que há leitos disponíveis nos hospitais, respiradores parados e se dana para a rua. É só disso que o corona vírus gosta.
Como estou encarcerado há 93 dias, com uma ou outra saída absolutamente necessárias, o que incluiu um abençoado dente quebrado, que me obrigou a ir ao dentista, experimentado uma felicidade raríssima, incompatível com o incômodo da situação, de vez em quando pego o carro, coloco máscara e circulo pela cidade. Normalmente à noite. No começo, Belém parecia uma vale de almas adormecidas. Ninguém na rua. O silêncio só era quebrado pelas sirenes das ambulâncias que não parava de passar. Agora, está tudo como dantes, no quartel de Abrantes.
No dia em que precisei ir ao dentista, aproveitei para rodar por diferentes bairros. O que vi me permitiu conhecer a dimensão do descaso. Muita gente sem máscara, meninos empinando papagaio, indiferentes – como sempre – ao trânsito e nem aí para qualquer tipo de proteção. Parecia que a vida deles valia menos que uma simples rabiola. O comércio está lotado. Tudo está lotado. Daqui a pouco, os hospitais voltarão a ficar lotados.
Das frustrações que levarei desta vida, duas são de tal modo banais que até me envergonho de não ter conseguido vencê-las: empinar papagaio e assoviar. Na rua da casa, todos os meninos sabiam, com impressionante facilidade, colocar papagaios no céu. Na hora de preparar o cerol, eu ajudava. Arrumava vidro, pano para picar, o paralelepípedo. Derretia a cola, comprada em tablete, na lata de leite e ajudava a encerar linha. Ficava com a mão toda cortada, mas fazia.
Os papagaios que empinávamos eram comprados na casa da dona Belém, uma barraquinha da madeira, muito humilde, que ganhava cor e vida com os papagaios pendurados na fachada. Todos tinham formas coberturas geométricas e tonalidades variadas compostas em papel de seda. Não lembro de nenhum monocromático. Dona Belém tinha filariose linfática, também chamada de elefantíase, nas duas pernas. Andava com dificuldade e nunca se curou da doença. Era uma artista. Pena que ninguém registrou seu trabalho.
Saíamos de lá com rabiola, cangula, cangulão, tudo papagaio, nada de pipa. Pipa era outra coisa, que só aparecia na época de férias. A estrutura era de material mais resistente ao vento forte da praia de Salinas e parecia uma ave com asas abertas. Em Belém, subiam papagaios.

Por um triz não escrevi “soltávamos”, em vez de subiam, porque a vontade de colocar no ar um papagaio jamais desapareceu. Nem com cangulinha besta, feita com jornal, tala da vassoura e rabo de papel eu me acertava. Via meus colegas e meu primo Jarthe em pé no muro, pilotando um papagaio, dando voltas, cortando-e-aparando.
Quando o cerol era bom, decepava, impiedosamente, a linha do que estava ao lado, como se fossem dois galos de briga. Livre do elo que o prendia ao solo, o papagaio ganhava vida própria e voava sozinho, sem rumo, ao gosto do vento. O responsável pela façanha comemorava, soltando uma expressão própria dos vencedores: “auuuu vai”, em vez de já vai. Enquanto isso, a molecada ficava doida, à espera do papagaio que “morria”. Os mais espertos tinham varas, nas quais enrolavam a linha, antes que ele chegasse e saiam correndo com o prêmio. Nem buquê de noiva é tão disputado.
Tudo isso fez parte de minha infância e passou diante de meus olhos, sem que soubesse agir. Igualmente não aprendi a assoviar, nem a soltar pião de madeira com ponta de prego. Fui um menino incompleto.
Se não me dei com essas brincadeiras, pelo menos aprendi a escalar muro, a andar de bicicleta e a subir em árvore. Pode não ser muita coisa, mas já conta uns pontinhos, porque, esqueci de dizer, nunca acertei a dar um chute em bola. Como disse, fui menino incompleto.
Não queria falar disso numa crônica de numeração especial – é a 90ª. – , mas vida de cronista é assim. Começa de um jeito e, quando se vê, pega um atalho e se mete por outros caminhos. Na verdade, eu ia começar a me despedir, mas acho que o subconsciente me traiu. Ou melhor: não deixou.
Esta a primeira das últimas dez crônicas da série “Diário de um desespero – ou quase”, prevista, agora, para acabar no número 100. Não haverá 101ª, ou CI. A série do desespero não tem mais sentido, porque não sinto mais vontade de bater a cabeça na parede. Me habituei ao distanciamento e acho que não me acostumarei à rua com a mesma facilidade de antes.
As crônicas, porém, continuarão a ser escritas e publicadas, talvez todo dia, talvez não. Mas prometo que, em breve, virá uma bela surpresa. E ainda não será o livro.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
Série Diário de um desespero – ou quase
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Imagem: Candido Portinari — Meninos soltando pipas, 1952. Portal Portinari
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