Comer, orar, vigiar, emagrecer e morrer. De fome.
Diário de um desespero – ou quase – XCI
João Carlos Pereira
Sem que eu houvesse solicitado – até porque não embarco em coisas dessa natureza – uma sugestão para perder peso caiu no meu email, oferecendo um programa que, seguramente, foi elaborado por gente que não deseja ver o cliente em forma, mas bem morto. Nem reparei, mas é capaz que a “promoção” seja patrocinada por alguma funerária. Se for, excelente ideia: o sujeito paga pelo programa, morre e já tem o contato do lugar onde passará as últimas horas de sua vida, confortavelmente instalado num caixão e com muitos quilos mais magro. O restante do trabalho será completado, gratuitamente, pelos vermes. Há coisa melhor?
Já fiz uma reeducação alimentar, orientada por um profissional extraordinário, chamado Rodrigo Tupiassu Gurjão Sampaio. Em um ano, perdi 27 quilos. Não senti fome, não tomei remédio, não enlouqueci. Apenas me reeduquei. Depois, me descuidei. Tive um problema no osso da perna e fiquei sem poder fazer meus exercícios. Achei que magro não volta a engordar e me lasquei. Esquecendo a orientação evangélica de orai e vigiai, não vigiei.
Nessa reeducação podia comer de um tudo, mas devia evitar fritura e gordura. A única recomendação era igual à da propaganda da bebida: em vez de beba, “coma com moderação”. Estava autorizado a comer até dois pães carecas por dia: um de manhã, outro à noite. Eu não abri mão de maniçoba, nem de unha de caranguejo, nem de nada. Não sofri um dia. Não me frustrei, não amaldiçoei a vida. Pelo contrário. Fui feliz. Até camisa de malha tamanho P dava em mim. Mas orar e não vigiar dá nisto: ganhei peso.
Como desejo sobreviver à covid-19 e usar minhas roupas bem frouxas, do jeito como gosto, estou, há três semanas, seguindo a antiga prescrição, mas de forma mais intensa: cortei o pão, o jantar, a Coca-Cola, que tanto amava e hoje não me faz tanta falta, além da farinha – essa a maior perda. Sei que posso substituir duas colheres de arroz por duas de farinha. Mas quem diz que consigo? Aí decidi apelar para o radicalismo. Não vou dizer que estou adorando, mas saboreio, a cada dia, a vitória sobre mim mesmo.
No começo da pandemia, todo mundo brincava que ia voltar à vida rolando, porque andar seria impossível. Levei isso meio a sério, meio na graça, mas depois acordei para a realidade. No meu caso, emagrecer significa sobreviver. Se eu escapar do corona vírus, não quero perder para a balança. Questão de escolher.
Como estou fazendo da forma como o Rodrigo ensinou, sei que vou conseguir e, desta vez, orando e vigiando. Quanto ao email promocional, já deletei. Mas não resisti e dei uma olhada, só para mangar. A lista de “não pode” era uma coisa impressionante. Para nãos ser injusto, acho que podia beber água, respirar e comer uma folha de alface em cada refeição. A porção diária de proteínas eram cem gramas. Essa parte achei ótima. Compro um quilo de coxa de frango e dá para dez dias. Meia coxa a cada refeição. Não pode sequer sentir cheiro de bebida alcoólica, quanto mais dar uma bicadinha. Se na receita do frango contiver vinho, pode esquecer.

Entre uma “refeição” e outra fica liberada uma coisinha qualquer, não sei se cinco amendoins ou meio ovo de codorna. Acho que pode uma xicrinha de café. Açúcar, nem pensar. Arroz, só se quiser engordar. Derivados de trigo levam ao pecado da gula. Esqueci de ver se a pessoa pode comungar, porque Hóstia é feita de trigo e contém glúten. Que mais…? Tudo que for sem gosto, sem lactose, sem atrativo visual, pode. Aliás, deve. É altamente recomendável.
Não me dei ao trabalho de ver quem assina essa condenação. Pelo telefone de contato, não é daqui. Nem da parte de Deus.
Depois de muito tempo preso, entendi tanta coisa sobre a vida que, até janeiro, não compreendia com clareza. Uma delas diz respeito ao direito de ser feliz. E quem pode ser feliz, sobretudo num tempo como esse, quando tudo é praticamente proibido, se privando de prazeres essenciais?
Soube que um padre, certa vez, resumiu sua homilia em dez palavras. Ele avisou que seria breve, mas nem que falasse meia hora ganharia em didatismo, sabedoria e clareza. “Deus nos deu a vida para que aprendamos a viver”. Precisava de mais algum complemento?
Houve um tempo em que uma campanha incentivava as pessoas a prestigiar a produção teatral. Era o famoso “vá ao teatro”, que se em todo canto. Como diria o Pondé, os “inteligentinhos” adoravam e faziam disso um mantra. Aí veio um sujeito com opinião própria e completou: “vá ao teatro! Mas não me convide”.
Todo mundo é obrigado a gostar de teatro, de cinema, de televisão, de museu, de livro? Essa é mais uma regra de conveniência que impele as pessoas a viver de aparências. Todo mundo precisa, ou pre-ci-sa, como escreveria a Danuza Leão, para deixar bem desenhadinho, ser igual, curtir as mesmas coisas, aplaudir os mesmos artistas, pedir a mesma comida, ser “feliz” como todo mundo é? Tentar fazer da vida real uma propaganda de margarina é o melhor caminho para a infelicidade. Se o povo que faz selfie diante do Louvre entrasse nele, a fila só iria terminar em Icoaraci.
Apenas para ficar no mesmo território, penso no Museu “Bourdelle”, com esculturas de Emile-Antoine Bourdelle, ou no Marmottan-Monet, o que abriga a maior quantidade de obras do artista. São dois museus parisienses que eu adoro. Ônibus de turismo não passa nem perto. Pouca gente os conhece. Mas existe essa obrigação de conhecer e de gostar? Fico pensando: casos eu fosse obrigado a gostar de funck e de festa, de pagode, balada, multidão e de sertanejo estaria liquidado.
Respeitar o quadrado do outro faz a vida ser melhor. É bom lembrar que eu também sou o outro. Ninguém tem o dever de gostar do que não gosta, apenas para ser agradável. Aprendi isso bem tarde, mas ainda bem que aprendi.
Viver e saber viver serão meus lemas mais objetivos. Emagrecer virá como conseqüência. Mas não com aquela dieta doida, que foi para a lixeira há muito tempo e de lá não sairá jamais.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
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Imagem: Manabu Mabe — Natureza morta, 1952. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras
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