Lições de agora para a vida toda. Ou nada terá valido a pena.
Diário de um desespero – ou quase – LXII
João Carlos Pereira
Toda vez que eu dizia que ia comprar uma esteira para fazer exercício em casa, sempre ouvia a mesma resposta graciosa: “compra. É ótima para pendurar roupa”. Com esse tipo de estímulo, desistia na hora. Na verdade, desisti várias vezes. Cheguei até a sair para procurar um modelo que coubesse no meu orçamento. Na verdade, eu olhava mesmo era para confirmar se o troço dava para pendurar roupa. Pior que é perfeito para esse fim.
Quando eu malhava (sim, eu fazia musculação, minha senhora. Hoje faço hidro), numa academia na Alcindo Cacela, as esteiras eram colocadas de frente para a rua e, quem pegava as melhores, conseguia ver a vida passar, através do vidro. Minha distração era contar dez minutos, tempo que as pessoas levavam, em média, para dar uma volta completa no calçadão do Museu. E eu, que sempre detestei academia, sobretudo quando há aquilo que chamam de música para ritmar os movimentos, me sentia ainda mais infeliz. Parecia um passarinho na gaiola, olhando os outros livres, conversando, na rua, e eu ali, engaiolado, correndo feito um leso, para chegar a lugar nenhum.
Como estar na Academia era uma opção, reclamar não fazia parte do pacote. Não tem aquela história de que o combinado não é caro? Pois é. Eu fui porque quis, mas não gostei. Agora, frequento uma deliciosa aula de hidroginástica, onde o único idoso, digamos assim, pelo menos na forma da lei, sou eu. O resto é tudo gente na faixa dos 40. Tem até adolescente. Pena, pena mesmo, que a pandemia nos afastou. Mas a integração do grupo era tamanha, que o grupo no zap continua alegre e festeiro, com todos ansiosos pela volta às aulas. Inclusive eu, o mais preguiçoso de todos.
Não comprei a esteira, consciente de que iria jogar dinheiro fora. Aprendi a não alimentar sonhos de consumo. Aliás, já disse neste espaço, não cultivo mais sonhos. Faço planos. Se um plano der certo, realizo um sonho. Mas perder tempo, gastando energia e pendurando impossibilidades nas nuvens é coisa para quem possui juventude e pode ser arriscar em aventuras, para quebrar a cara muitas vezes. Não temo quebrar a cara, mas penso que, quanto mais o tempo passa, mais difícil fica colar um osso. Por isso levo o barco sem pressa, na direção que desejei. Se Deus, que também pode se ocultar na forma do vento, resolver mudar o curso do meu barco, não vou pular feito um fracote. Como se diz no Ceará: “tô deeeentro”.
Se não tive esteira, também não fiz dívida à toa ou me frustrei. Mas durante muito tempo carreguei na alma o travo de não ter tido, em criança, um autorama grandão, colorido, iluminado, para chamar de meu. Autorama, nem sei se ainda fabricam, eram umas pistas que subiam e desciam, como se fossem um viaduto, tipo o trevo da “Júlio César”, a caminho do aeroporto, ou o do Entroncamento, sobre as quais carrinhos movidos a controle remoto subiam e desciam. Era brinquedo fino, coisa para gente endinheirada. Meus olhos só faltavam pular, quando via um. Na nossa rua, um colega montava o dele e nos deixava brincar. Cada menino ficava um pouquinho, mas nunca era tempo bastante para matar a vontade.
O tempo correu e meus brincados passaram a ser outros. A vontade de ter um autorama morou comigo, num quartinho escondido no sótão da minha alma, por muitos e muitos anos. Um dia, quando precisei abrir todos os cômodos da minha alma, inclusive os compartimentos secretos, aqueles que se comunicavam com o mundo através de passagens desconhecidas, dei por falta do autorama. Procurei por todo canto e não havia sinal dele. No lugar onde o deixei, não restava nem poeira. Apenas a marca de uma caixa grande que, simplesmente, desapareceu, por absoluta inutilidade.
Se antes da pandemia eu já havia iniciado uma fase de desapego das coisas, agora mesmo é que estou me liberando delas. Não falo apenas das materiais, mas daquelas que, feitas de chumbo, ainda pesam nos bolsos de minha alma.
Um tempo desses, me deu uma doida, nome que uso para crise de consciência, abri meu guarda-roupa e fiz uma limpa geral. Todas com a marca da falta de uso. Umas ainda preservavam a etiqueta da loja. Foi tudo para quem precisava mais do que eu. Dias depois, olha a ironia, tive de ir a uma cerimônia onde era exigido passeio completo. Passeio completo é paletó e gravata. Onde é que se passeia assim? Nesse calor? Deus me livre. Procurei a única blusa de manga comprida que restou e era justamente a mais velhinha. A nova, boa, com que aparecia na televisão ou comparecia a cerimônias formais, foi no meio do descarte. Usei aquela mesma e ninguém deu pela gola desgastada.
Gola puída me lembra uma fase da vida em que precisava mandar virar a gola. A camisa estava boazinha, mas a beira tinha umas dentadas, como se a traça andasse se deliciando por ali. Não era traça, claro, mas envelhecimento natural daquela parte. Feita a alteração, a roupa parecia novinha. Uma vez, conversando com Maria Sylvia Nunes, falei de gola virada. Ela, com aquele jeitinho suave, contou assim: “no tempo das vacas magras, eu virei muita gola das camisas do Bené”. O Bené, para quem não liga o nome à pessoa, era o sábio Benedito Nunes, seu marido, que não dava menor bola para roupa. Seus valores eram outros.
Comecei essa história falando em esteira para caminhada e meu propósito nem era esse. Mas a conversa começou desse jeito e assim foi. Quase esqueci de dizer que, quando era mais novo, o Sílvio Santos colocava uma televisão diante da esteira e ficando vendo filmes, enquanto caminhava. Hoje, na beira de fazer noventa anos, duvido que ele se arrisque a uma queda. Nessa idade, qualquer coisa pode ser fatal. Menos para a rainha Elizabeth II, que parece ser imortal e indestrutível. Também tenho uma comadre que gravava o programa do Jô Soares e, no dia seguinte, em cima da esteira, via tudo que passou na madrugada, quando ela já estava no décimo sono.
Se não era para falar de esteira, por que fui me meter nessa prosa? É que, ontem, olhei para a poltrona que fica no meu quarto, quase apenas de enfeite, porque raramente sento nela, e percebi que estava estranhamente vazia. Sim, a cadeira também era um ótimo lugar para entulhar roupa e bregueços. Pois ela está vazia! Há sessenta dias trancado em casa, para que mudar tanto de roupa? Ferro também é coisa que raramente se liga. Quem dera fosse sempre assim…
A pandemia vai deixar grandes lições e espero sair dela com algumas bem assimiladas, pronto para colocá-las na prática. A primeira delas será ampliar a sessão do desapego. Não tem a tal sessão do descarrego? Pois a minha vai ser parecida. Espero que baixe o caboclo “desapegador” e consiga me separar de uma livrarada que nunca mais vou ler. O destino deles será voar para outras mãos.

Há algum tempo, uma amiga muito querida, dona de um antiquário, comentava comigo sobre a importância de nos desprendermos das coisas materiais, porque o gostar exagerado, obsessivo, transtornado, acaba nos prendendo demais ao que não é fundamental e nos afasta do que realmente importa. Mudamos de assunto e, bem depois, manifestei interesse em comprar uma de suas peças. Foi quando ouvi dela uma lição que jamais esquecerei. “Não, senhor. Não vais comprar mais nada. Nosso tempo de acumuladores já acabou.” Claro que não é seu hábito dizer isso aos fregueses de sua loja, porque seria um contrassenso abrir um comércio e não querer vender. Mas ela não falou isso ao cliente, que há muito deixou essa condição. Foi direto ao coração do amigo.
A poltrona vazia, servindo apenas para suas funções de poltrona, o desapego e a solidariedade não devem ser apenas motivos de reflexão. Precisam ser práticas da minha vida. Ou então sairei da pandemia com as mãos mais cheias de coisas inúteis, do que quando entrei.
O momento, agora, é de ter as mãos vazias. E cada um saberá o porquê.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
Série Diário de um desespero – ou quase
Todas as crônicas publicadas no Ignatiana
Imagem: Ismael Nery — Essencialismo, 1931.
Ignatiana Visualizar tudo →
IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.