Leitura bíblica na ótica da negritude
Simone Furquim Guimarães
Nesta semana em que celebramos o Dia da Consciência Negra, inspira-nos a fazer uma leitura bíblica na ótica da negritude. Começamos por entender que boa parte da história bíblica é localizada geograficamente numa região onde situa o povo negro: falamos, sobretudo, do Egito, lugar onde tivemos grandes momentos de experiências do povo de Israel, onde José, Maria e Jesus foram acolhidos quando Herodes perseguia o primogênito.
No Evangelho de Mateus 2,1-12, vamos ler o relato da visita dos magos ao recém-nascido, que certamente inspirou a criação do presépio. Poucos detalhes são dados, a não ser que pelos sonhos que tiveram, puderam preservar a vida de Jesus contra as ameaças do assassino Herodes. A leitura oficial não nos proporcionou saber a origem étnica dos magos, mas, a literatura popular, contada desde nossos ancestrais e nas festas de Folias de Reis, possibilitou-nos descobrir o nome de um dos magos, e que ele é negro, rei da Pérsia e que se chamava Belchior. Isto só foi possível, porque temos também acesso aos Evangelhos Apócrifos, que são tão antigos como os Evangelhos canônicos e são fontes tão sábias e verdadeiras quanto à primeira – a Bíblia.
Nos dois primeiros capítulos do Evangelho de Mateus temos, então, a Boa Notícia de que os povos negros fizeram parte da formação de Jesus e participaram de seu nascimento e de sua infância.
Mas, além da tarefa de pinçar personagens negras nos textos bíblicos, a proposta da Leitura bíblica na perspectiva da negritude é de buscar a Boa Nova para todos os negros e todas as negras que sentem na pele a INJUSTIÇA.
A palavra JUSTIÇA é a principal chave de leitura fornecida pelo Evangelho. Mateus fala sobre justiça várias vezes. Você verá que é o Evangelho que mais insiste no cumprimento da justiça.
O Evangelho insiste na questão da JUSTIÇA porque encontra várias categorias de pessoas que sofrem a injustiça e são marginalizadas, como os sem terra (5,1-5), desempregados (20,1-16), migrantes (2,13-23; 4,13-16.24-25), perseguidos (5,10-12; 23,13-32) e pobres (11,25-26; 6,25-34; 15,32; 25,31-46).
No tempo de Jesus, havia muitas leis que separavam as pessoas. As leis da pureza determinavam quem estava mais próximo de Deus e quem estava mais distante. Uma pessoa impura era eliminada do convívio social e novamente admitida mediante os rituais de purificação. Embora não faça parte da nossa cultura o sistema do puro e do impuro, ainda há muitas barreiras e preconceitos que separam e dividem as pessoas nos diversos ambientes sociais.
Um exemplo bíblico pode ser encontrado em Mateus 9,18-26. O sofrimento por que passa a mulher hemorroíssa, que sofre de um fluxo contínuo de sangue há 12 anos. Esse sofrimento é originário das injustiças da Lei judaica que a excluía da economia da salvação e a excluía da sociedade. Este contexto de exclusão gerava nas pessoas um profundo mal psíquico (depressão) que pode desencadear mal para o corpo.
Assim como esta mulher, que sofrera de saúde há 12 anos por descaso e preconceito religioso, muitas mulheres, sobretudo negras, em nosso país, também sofrem nas filas do sistema de saúde pública, morrem de hemorragias por descasos e por preconceitos dos próprios serviços de atendimento médico. Vimos esta cena com frequência e não sabemos dimensionar as dores físicas e da alma que assolam a comunidade negra, que são as maiores vítimas deste sistema falido em nosso país.
Estamos na semana da consciência negra, que nos impele a uma postura de refletir e se indignar face as inúmeras discriminações existentes em nossa sociedade, bem como sermos uma Boa Notícia para nossos irmãos negros e negras, estimulando em todo o país à tomada de consciência de cidadãs e cidadãos, ao empoderamento, à desconstrução de uma cultura embranquecida e de racismo presente nas estruturas de poder e econômico.
Simone Furquim Guimarães é mestre em Teologia na linha bíblica. Tem experiência na área de Leitura Popular da Bíblia no Centro de Estudos Bíblicos (CEBI/Planalto Central).
Esta reflexão bíblica foi originalmente apresentada no Programa de Justiça e Paz, produzido pela Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, que vai ao ar todo sábado, às 11:00, na Rádio Nova Aliança.
Desde outubro de 2020, também disponível no podcast Ignatina.
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