O discernimento (inaciano) em política – notas
Thierry Linard de Guertechin, SJ
O discernimento social como prática anti-ideológica
Nas letras e instruções de Santo Inácio, aparece a prática incansável do discernimento social, com a precisão seguinte: há discernimento continuo porque Inácio busca a melhor adequação dos MEIOS e do FIM. Na “Meditação dos três homens para abraçar o melhor”, nos Exercícios Espirituais, Inácio se distancia tanto do utilitarismo como do idealismo, praticando a arte de ajustar os meios ao fim: o discernimento em vista de um maior serviço divino e bem mais universal.
Esta estratégia consiste em fazer aparecer a complexidade real das escolhas como método para chegar a um ajuste correto dos meios ao fim. A prática social inaciana, acostumada a todos os discernimentos que impõe a ação em quaisquer relações sociais, é anti-ideológica por ser realista.
A palavra anti-ideologia pertence à Ilustração, mas se enriqueceu na história cultural com a eclosão do liberalismo e do socialismo. A IDEOLOGIA É A ARTE DE PROMOVER INTERESSES, POR DEFINIÇÃO ANTES DE TUDO ECONÔMICOS, DISFARÇANDO-OS EM TEORIAS POLÍTICAS, FILOSÓFICAS OU RELIGIOSAS. Essas ideologias são misturas de realismo (ao redor dos meios) e discursos (tocando o fim).
Faz parte do debate das ideias, acusar a IDEOLOGIA do outro, colocando-se como REALISTA por ANTI-IDEOLOGIA. Os ministros do governo Bolsonaro pretendem liberar o país da IDEOLOGIA em nome de uma VERDADE apresentada como REALIDADE verdadeira. Na verdade, não é fácil nem dado viver uma ANTI-IDEOLOGIA consciente, organizada e eficaz socialmente.
A indiferença inaciana como anti-ideologia
Superando qualquer anacronismo, existe um conceito inaciano que corresponde ao que é a ANTI-IDEOLOGIA: a INDIFERENÇA. Pode ser útil entender a indiferença pela anti-ideologia, pois insufla um realismo social a uma atitude que pode requintar-se no íntimo do coração. Assim a indiferença pode ser estratégia da melhor escolha em vista de efetuações que servem ao fim, graças a uma avaliação mais real dos meios que são ambientes, desde o que se trata no interior ao que se constrói em pleno mundo. Inácio gosta de pôr em perspectivas finalidades que ganham em largura sem perder seu peso concreto.
A ideologia, suportando necessariamente referências sociais, consiste em absolutizar o que é relativo sob o manto de slogans que são mais petições de princípio que dados experimentais. A ideologia liberal se encobre de liberdade e a ideologia socialista de solidariedade. A ideologia sendo este misto, a pior das anti-ideologias consiste em estimar que a gente não fica dependente de nenhuma, exatamente como a pior política é aquela que pretende não fazer política. Inácio não confunde sua indiferença com essa anti-ideologia que se coloca acima ou afastada das ideologias em conflito.
O alvo é da ordem do possível, somente os meios são reais porque põem em obra o espirito e o corpo. Eis aqui o verdadeiro problema que está no coração do político: a articulação dos meios e do fim. Nenhum ambiente ou meio foi privilegiado absolutamente por Inácio.
Rumo a uma conciliação dos meios e do fim
Entre o realismo de Machiavel e a utopia de Savonarole, uma conciliação é possível no exato momento que a gente se aplica a efetuar a possibilidade de uma conciliação dos meios e do fim, reconhecendo que nenhum meio ou ambiente escapa à tentação de apreender um dia o que há de melhor para absolutizar-se em se mesmo.
As boas relações a manter, na medida do possível com todos, são meios em relação a sobrevivência da Igreja, da Companhia, da CVX que são também e somente meios em vista do fim. As relações, como meios de troca de poderes com os uns e outros, são valorizados pelo bem ético superior: amor, caridade. O amor universal se acompanha da diferença, que pode ser dramática, entre partidos e os meios(ambientes). Não se trata de se refugiar no fim por medo dos meios.
A anti-ideologia, que chamamos indiferença social ou critica positiva da sociedade, está enraizada na espiritualidade dos Exercícios Espirituais. “O apelo do rei temporal ajuda a contemplar a vida do rei eterno”, cuja temática é essencialmente social. Trata-se nos dois casos de preferir à honra imaginada o real com suas frustações. A indiferença inaciana, no íntimo dos corações em todas as relações, salva das absolutizações que falsificam o real.
O discernimento inaciano é político
O discernimento vivido por Inácio é verdadeiramente um “discernimento político”, porque Inácio, nas suas decisões no que toca as missões, aponta conscientemente um fim de bem comum e escolhe os meios para realizar objetivos numa perspectiva final do bem comum. Este discernimento aparece como solução original, porque é essencialmente anti-ideológico, lá onde o debate das ideologias esconde o jogo mais que contribui a encontrar uma boa saída. Indo em sentido oposto da pressão ideológica, Inácio retira aos meios toda pretensão a enfeitar-se dos prestígios do fim. “É próprio do mau anjo, assumindo a aparência do anjo de luz, introduzir-se junto à pessoa devota para tirar vantagem própria” (EEs, 332).
“O Superior, quando envia em missão deve determinar-se só pelo maior serviço de Deus e bem universal na escolha do lugar para onde envia, na escolha dos fins, das pessoas, das diversidades modalidades e da duração” (Constituições, 618). O universal, colocado em evidência, não é ideológico porque é a soma de todos os discernimentos com êxito ao serviço do bem comum do ser humano.
É possível “procurar e achar Deus em política”?
O discernimento social de Inácio, sendo uma efetuação da fé, é espiritual. Torna possível “procurar e achar Deus” em política. Isso supõe uma teologia política, não um discurso sobre Deus que pode ser interpretado como ópio, mas uma escuta do discurso próprio de Deus em nossos próprios discursos sobre nós e Deus. E o discurso da prática política deixa espaço ao discurso de Deus? Uma interpretação de Gênese 1,28 parece deixar ao homem só a responsabilidade do político: “Encham e submetam a terra”. Hoje, se escuta de alguns cristãos, que a política não tem nada a ver com a Igreja.
Uma tradição antiga
No século passado, a Igreja manifestou na cultura conterrânea um “sim” refletido e praticado à questão de uma presença de Deus na res pública, como também na questão social. Pela Ação católica, que superou a servidão teórica da Igreja ao político defendida pela TFP e afilhados, uma palavra de engajamento da fé e, então com todas as mediações necessárias, de Deus nas “realidades criadas” foi levado ao mundo.
Por isso, na Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II, o abstencionismo em política por parte dos cristãos em nome da sua fé foi rejeitada; uma ética cristã do engajamento em política está evidenciada; o direito para a Igreja de falar no nome de Deus neste assunto fica salvaguarda.
A Igreja tem o direito de edificar uma doutrina social e política para todos e não é condenada a falar somente sobre pontos da fé no quadro da comunidade que ela constitui. Em filosofia política, a Igreja adere à tese do bem comum a procurar por todas as partes. No entanto, a Igreja fica impotente na prática, pois, as partes em presença pretendem, mais ou menos ideologicamente, representar o bem comum.
A primazia da práxis (pessoal e coletiva)
No seu conjunto, as posições fundamentais da Igreja em matéria de política indicam distância tomada em relação das teorias puras e manifestam interesse nítido para as realizações concretas, incentivando tomadas de decisão. “Pertence à essência do político ser ação” (Julien Freund). Nas decisões tocando tanto os grandes ambientes humanos (práxis coletiva) como nas opções pessoais de vida (práxis pessoal), há uma ligação íntima entre a ação assumida e a ajuda que podemos esperar de Deus.
Por sua práxis e no próprio discernimento que a sustenta, Inácio interessa-se não ao Deus só fim, mas ao Deus que dá os meios (e os ambientes). Inácio liga-se por sua práxis e no discernimento, que a sustenta, não ao Deus fim, mas ao Deus que dá os meios e os ambientes. No fundo, Deus não é somente o fim supremo, ele é aquilo graças ao qual algumas escolhas podem conferir a alguns bens ser “universais” e, por isso, “divinos”. “O serviço maior divino é o bem maior universal. O bem é tanto mais divino quanto mais universal”.
Presença de Deus no discernimento e engajamento político
Deus mostra sua eficácia na gestão dos meios, sem os quais não pode haver ação política neste mundo. A iluminação da inteligência que discerne e os resultados objetivos são sinais a interpretar espiritual e politicamente. O discernimento espiritual eficaz em política é uma via real para aprender a conhecer a eficácia de Deus no seu governo, sábio e bom, da história dos homens.
Hoje, fica urgente achar um caminho entre a espiritualidade e o engajamento social e político. Há que sofrer consolações e desolações inerentes ao mundo do social e do político, há que aceitar analisar suas contradições e os seus movimentos próprios, se a gente quer aqui praticar de verdade o discernimento espiritual.
O método consiste em padecer os meios e ambientes que estão em jogo, numa presença eficaz do Deus na gestão dos meios sem os quais os fins se tornam utopias ou ideologias. Este método é paralelo ao preconizado pelos Exercícios Espirituais para as aventuras da liberdade espiritual na luta com ela mesma na presença do Criador e Senhor.
Para concluir, citamos a fórmula paradoxal do jesuíta húngaro Gabriel Hevenesi, no início do século XVIII:
Haec prima sit agendorum regula:
“Sic Deo fide,
quasi rerum successus omnis a te, nihil a Deo penderet;
ita tamen iis operam omnem admove,
quasi tu nihil, Deus omnia sit facturus”.
Creia assim em Deus, como se todo o êxito dos negócios dependesse de ti, em nada de Deus; não obstante ponha tudo em obra nesses negócios como se não fizer nada, Deus tudo.
Brasília 21 de outubro de 2019.
cf. BERTRAND, Dominique. Le discernement em politique avec Ignace de Loyola. Paris : Cerf, 2007.
Thierry Linard de Guertechin é padre jesuíta, membro do Observatório de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA).
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