Ano Novo: o “novo” que nos habita
Pe. Adroaldo Palaoro, SJ
Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido
Lc 2,20
No início deste Novo Ano busquemos inspiração no relato do evangelho de Lucas sobre os pastores dos arredores de Belém, pastores que buscam, encontram e constroem a paz. Relato que quer abrir nossos olhos, despertar nossa esperança, suscitar nosso compromisso e abrir um novo horizonte de sentido na nossa vida.
Muitas vezes costumamos cair neste erro: considerar o ano civil como um “ciclo”, como um tempo circular que volta sempre, sem mudança, repetindo-se mecanicamente.
Esta sensação de circularidade imprime monotonia e rotina à nossa vida e não corresponde ao que proclamamos como cristãos; continuamente celebramos o Deus da surpresa, o Deus da novidade, Aquele que vai sempre à frente, que não se repete, Aquele que sustenta e impulsiona nossa história (pessoal, comunitária, mundial, eclesial…), que nos interpela e nos compromete na construção do Reino, até que Jesus (o centro de nossa vida) seja realmente “tudo em todos”.
Foi assim que os pastores, ao se deslocarem para a gruta de Belém, se depararam com a surpreendente novidade de Deus: a salvação se fez visível na margem, na periferia da vida. No rosto de uma criança recém-nascida se revelou a ternura acolhedora de Deus. O “novo” brotou do chão despojado da vida e não dos palácios, dos templos.
Neste primeiro dia do Ano vamos reler o relato dos pastores com a liberdade com a qual foi escrito por Lucas. É de noite. Alguns pastores velam seus rebanhos dos perigos. São pobres, marginalizados da sociedade e do sistema religioso. Desejam a paz, a paz da justiça ou a justiça na paz. Não querem a paz do império romano, de seu poder violento. Tampouco podem esperar que algum “messias” (rei ou sacerdote) traga a paz. Que podiam eles esperar de Deus, pois são considerados como gente de duvidosa moralidade e ritualmente impura e, portanto, excluída dos benefícios divinos do templo, gente privada do perdão e da paz divina que a religião promete? Que podem esperar do “Deus altíssimo”, invocado pelos poderosos e a quem os sacerdotes do templo imolam os cordeiros de seus rebanhos? Que podem esperar do Deus manipulado pelos mestres da lei que os exclui, por serem ignorantes e inferiores? Por acaso existe outro Deus?
E, de repente, sentem que, na noite da desesperança, uma luz os envolve e uma voz os consola. E se põem a caminho, guiados pelo coração e pela luz.
E na gruta, onde costumam guardar seus rebanhos, a luz de seus olhos se encontra com a glória da vida e do universo, encarnada no sinal mais humilde e luminoso: um recém-nascido. Nas ruínas do velho mundo quebrado, do mundo desgarrado, se acende a luz da justiça que garante a paz verdadeira, a luz da paz que gera a justiça. Nas profundezas do universo e de cada ser humano se acende e brota sem cessar um mundo novo, onde as honras não fascinam, as riquezas são compartilhadas, os poderes se rendem, um mundo onde a justiça e a paz se encontram.
“Já não há mais um Deus altíssimo”, poderiam ter dito aqueles simples pastores. Não existe o Deus dos reis com seus exércitos, tronos e palácios, nem o Deus das religiões com suas doutrinas, cleros e templos. Deus é o Ser fontal de tudo quanto existe. É a Luz originária da qual tudo nasce e vive desde sempre. É a luz da energia que tudo atrai e tudo impulsiona. É a Paz na justiça, a paz ativa, terna e subversiva, que cria e re-cria tudo incessantemente, de transformação em transformação. É o Amor universal que atrai tudo e tudo impulsiona para o “novo céu e a nova terra”.
É preciso ter um coração de um humilde pastor para compreender o “mistério” da Gruta de Belém. O Deus de Jesus não é o Deus que já tem tudo preparado, atado e bem atado; não é o Deus da inércia ou da rotina, mas o Deus que faz tudo novo e, por isso, nos move à renovação permanente e nunca à acomodação. É o Deus sempre criativo que suscita o “novo” e o “surpreendente”, que não “ata” as coisas nem amarra a Criação; por isso, nos convida a sermos co-criadores e colaboradores com Ele na criação contínua através do trabalho e da ação humana. É o Deus da surpresa e da liberdade; uma liberdade humana que conduz a situações imprevisíveis.
Naquela noite de Natal, numa Gruta despojada de qualquer tecnologia, aconteceu uma conexão muito especial, a melhor conexão jamais inventada. Deus, rompe as distâncias, faz-se “humano” e se põe em contato com a humanidade, sem mensagens nem mensageiros. É certo que fora anunciado pelos profetas, mas fazia muitos anos e não havia nenhum sinal extraordinário de que fosse acontecer naquele momento.
Mas, esta é a surpresa: Ele vem em pessoa, rompe as distâncias entre o céu e a terra, entre sua divindade e nossa humanidade; naquela luminosa noite, Deus, em Jesus, nascido da Virgem Maria, se faz um de nós, “um entre tantos” e nos faz partícipes de sua vida. O “Verbo se humaniza para nos divinizar”; e assim recebemos a filiação divina e nos tornamos filhos e filhas de Deus.
O Deus do “novo” vem dar sentido e inspiração ao Novo Ano que se inicia. É Ele que desperta nossa imaginação, reacende nossos desejos e alimenta nosso espírito de busca.
Imaginação, inspiração, originalidade, criatividade…
são o sal da vida e o sopro do Espírito; é o que faz sair luz das sombras e ordem da confusão; é o início de tudo.
Tudo o que é novo começa por uma inspiração e o que não é novo é apenas repetição do que já foi.
A criação é privilégio do Criador. Participar de alguma maneira humilde, simples, mínima, na emoção suprema da criação primeira é o prazer mais íntimo que o ser humano pode ter sobre a terra. A criatividade e a inspiração são a faísca do divino no coração do ser humano.
É a expressão da inspiração que, tal como vento, não se sabe de onde vem e nem para onde vai.
Por nossa conta não podemos fazer muito, apenas nos preparar, estar atentos, observar o horizonte, esperar a oportunidade. Mas quando a inspiração surge é preciso lançar-nos. Quem hesita diante da oportunidade perde a vida, que é feita de oportunidades. É preciso aprender a reconhecê-la, acolhê-la com imediata alegria e vontade decidida. “Cada um deve inventar sua vida”.
A vida só tem sentido quando se torna “história”, isto é, quando não se limita a repetir o passado, senão que gera algo novo a partir de uma origem. Todo ser humano experimenta, de alguma maneira, “impulsos para a superação de si”; sua vida está orientada para algo definitivo, pleno… e ele vai construindo-se a si mesmo até converter-se em alguém único e irrepetível. A maneira de fazer isso não pode ser forçada, mas consiste em aceitar o que já se tem e, partindo daí, dar uma direção nova à sua história.
Somos impulsionados, continuamente, a romper com a vida formal e convencional, a vida ordenada com normas claras e recompensas seguras, o exercício de virtudes pessoais… e caminhar para uma vida mais audaz e incerta, de horizontes amplos, de exigências que nos impulsionam a “começar de novo”, de signifi-cado mais universal; despertar a motivação e a intenção daquilo que vivemos e fazemos: por quê? para quem?… Temos um coração maior que o mundo e desejos que nos fazem ter asas de águia.
O ser humano é, em sua essência, mudança, movimento, dinamismo, energia… Deus não nos deu um espírito de timidez, de medo, de fuga, de acomodação…, mas de audácia, de criatividade, de luta, de participação…
Quando alguém não vive a vida a fundo, só lhe resta a rotina da vida e o vazio vital.

Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: Não percebemos precisamos de um coração novo? Não sentimos a necessidade de sacudir nossa apatia e autoengano? Como despertar o melhor que há em cada um de nós? Como reavivar a atitude humilde e transparente dos simples pastores que “glorificavam e louvavam a Deus” depois de terem encontrado o Menino na Gruta?
– Qual é o “novo” que Deus quer realizar em nós e conosco, em nossos ambientes, neste ano que começa?
– É preciso nos aproximar da Gruta de Belém “com todo acatamento e reverência possível” e, se fazemos isso de boa vontade e de bom coração teremos o privilégio de nos sentir envolvidos pela rede do amor misericordioso de Deus.
Se conseguirmos que o ano de 2026 seja “novo” com a eterna novidade da bondade, então também teremos um ano feliz.
Um inspirado 2026!
Pe. Adroaldo, SJ
Adroaldo Palaoro é padre jesuíta, atua no ministério dos Exercícios Espirituais.
Podcast Rezando o Evangelho | Textos do Pe. Adroaldo
Ano A — Quinta-feira da Oitava de Natal, Santa Maria Mãe de Deus
Imagem: Luís Henrique Alves Pinto
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