Julgamento exemplar

Completou-se no dia 11 de setembro de 2025 o julgamento do núcleo principal responsável pela tentativa de golpe de Estado e subsequente derrubada violenta da ordem democrática (Constituição Federal de 1988), que tem por chefe o ex-presidente Jair Bolsonaro. As sentenças já conhecidas dos oito réus da trama golpista são as que se esperavam do STF em face de gravidade dos crimes cometidos; não obstante pressões em contrário para desqualificar juízes, absolver o réu principal ou até mesmo transformar o julgamento em farsa.

O fato jurídico já configurado contém implicações significativas do ponto de vista histórico. É único na História Republicana desde 1891, não obstante a enorme frequência de golpes e tentativas de golpe tanto na chamada República Velha, quanto depois de 1930, principalmente no período sob a égide da Constituição de 1946.

Por sua vez, no presente, sob a égide de Constituição de 1988, o julgamento e condenação do núcleo político e militar da tentativa de golpe é exemplar por várias implicações político-sociais aí contidas, principalmente, a meu juízo, por afirmar o primado do Estado Democrático de 1988 e a condenação irreversível de todas as tentativas de derrubá-lo e também de se contrapor à perpetuação de uma péssima tradição histórica republicana, qual seja  uma certa cultura de “naturalização do golpe de Estado”

O caráter único na história republicana brasileira do julgamento ora proferido contém várias lições que atravessam esta mesma história, indicando-nos uma cultura do “golpe naturalizado” de trágicas consequências políticas para o Estado de Direito desde o golpe fatal de 1937 sobre a Constituição de 1934, secundado a partir da Constituição de 1946 por verdadeira indústria do golpismo, culminando com a tragédia de 1964. E o que aconteceu de meados de 2021 a 08 de janeiro de 2023, exaustivamente demonstrado pelo notável trabalho da Polícia Federal e Ministério Público, diferentemente do contragolpe do General  Teixeira Lott em 1955, garantindo a posse do Presidente eleito Juscelino Kubitscheck; identifica e pune os autores dos crimes cometidos a partir da Justiça Eleitoral e do STF.

Por seu turno, a principal sinalização no presente e às gerações futuras a partir do julgamento do STF de 11 de setembro é de caráter preventivo e educativo. O regime democrático tolera e protege os direitos de cidadania; mão não pode ser tolerante com a intolerância, sob pena não apenas da contradição lógica; mas principalmente da liquidação da ordem democrática, que se estaria instigando, fartamente documentada na história. E no caso ora em discussão o motivo imediato da tentativa de golpe esteve também ligado à posse do presidente eleito Luiz Inácio da Silva; mas diferentemente de 1955 foram as instituições de Estado legitimamente responsáveis e não o contragolpe militar, que garantiram a posse do Presidente eleito e agora completaram o seu trabalho

Por último, é preciso destacar que para prosperar a cultura do Estado Democrático, mais além das decisões judiciais legítimas; é necessário que os demais Poderes de Estado e a sociedade civil organizada também assumam seus papéis próprios neste sentido. No presente, o Congresso não pode aprovar anistias inconstitucionais. Tampouco a sociedade civil organizada deve comportar-se como mera observadora do processo político, pois mesmo não sendo parte integrante da estrutura do Estado, é peça essencial à defesa do Estado Democrático e à construção de um verdadeiro ambiente de pacificação n acional com justiça. Neste sentido, não há como conciliar pacificação nacional com “naturalização do golpe de Estado”. Pacificação se faz com justiça e respeito aos direitos humanos, incluindo ai os direitos dos condenados; o que não implica absolvê-los ‘a priori’ ou ‘a posteriori’ de qualquer penalidade. E até para proteger a sociedade de vícios históricos, a Constituição de 1988  protege o Estado Democrático da falsa pacificação nacional imiscuída na cultura de naturalização ou normalização do golpe de estado.

De tudo que foi objeto de análise neste texto transparece relevante a incongruência do Congresso conceder anistia ampla, de sorte a anular as condenações ao núcleo golpista ora iniciadas. Seria grave retrocesso jurídico anular cláusulas fundamentais de 1988, que sequer podem ser emendadas porque fazem parte da essência do Estado Democrático. Mas se houver alguma aventura neste sentido, precisamos estar atentos para proteger a democracia e pelos seus meios legítimos responsabilizar reincidências pervertidas.


Guilherme Delgado é doutor em economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Imagem: Alfredo Ceschiatti. A Justiça, 1961. Granito. Enciclopédia Itaú Cultural.

Guilherme Delgado Política

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