Comunhão com o cosmos: ponto de partida e de chegada dos Exercícios Espirituais
Pe. Adroaldo Palaoro, SJ
Os Exercícios Espirituais (EE) revelam que o Cosmos é a obra de Deus e exige uma aproximação contemplativa. Quanto mais proximidade e intimidade com a terra, mais profunda é a experiência espiritual.
Quando o ser humano não percebe o seu parentesco com a Criação, vive numa casa-prisão cujas paredes lhe impedem uma comunhão cósmica. Ao contrário, quando sente a presença de Deus em todas as coisas e entra em comunhão com toda a natureza, seu coração se emancipa e se dilata, sua mente se abre, seus horizontes se ampliam… O Universo passa a ser o seu grande lar, onde ele encontra o coração de Deus.
Em tudo pode-se vislumbrar um lampejo da divindade. Com isso, a experiência dos EE revela seu caráter universal, se converte numa aventura espiritual que nos permite viver uma espiritualidade ecológica e nos ensina a abraçar a Criação e o Deus do Universo. A comunhão com o Universo é ponto de partida e de chegada dos EE.
A Terra nos encanta e nos convida, constantemente, à admiração, ao cuidado, à reverência e à veneração. Tais atitudes, por sua vez, nos movem a caminhar pela Terra “tirando-nos as sandálias”, como Moisés diante da sarça ardente (Ex 3, 2). Estamos mergulhados no “grande Templo” formado por uma multiplicidade de notas, sons, sinais e mensagens diferentes. Formamos uma realidade complexa, diversa e única. Uma pedra, uma cascata, uma nuvem caprichosa, um pássaro, convertem-se em veículos de sabedoria. É necessário que nos eduquemos para captar a mensagem que eles nos transmitem e aprender a viver a comunhão com tudo o que nos rodeia. Todo o Cosmos é como um grande livro que precisa ser lido.
Santo Inácio nos ajuda a ver a beleza e a bondade presentes em todas as criaturas. O Amor se faz presença, se faz visível e se manifesta em cada detalhe da Criação.
Ao ver uma planta, uma pequena erva, uma flor, uma fruta, um pequeno verme ou qualquer outro animal, Santo Inácio contemplava e levantava os olhos aos céus, penetrando no mais interior e no mais remoto dos sentidos.
Pe. Ribadaneira
Saber e sentir-se em relação com os outros, com a Realidade, com a Divindade, com a consciência de que tudo está conectado, nos motiva a amadurecer uma nova espiritualidade, marcada por uma cosmo-visão integrada. E a “espiritualidade inaciana” abre possibilidade para isso.
Na verdade, a partir de Deus tudo é sagrado. Como já afirmava São Paulo: “Tudo foi criado por meio d’Ele e para Ele” (Cl 1, 16). Tudo é uma grande liturgia cósmica. O universo é um grande sacramento e se transforma no espaço da manifestação da divindade. Tudo é sagrado: a Matéria é sagrada, a Natureza é espiritual, porque é Templo de Deus. Todos os lugares da mãe-Terra pelos quais caminhamos são “territórios sagrados”. Segundo a Bíblia, a Terra é um jardim onde Deus tem prazer em passear. A contemplação nos leva a apalpar os passos de Deus por entre as criaturas.
Olhar como Deus habita nas criaturas: nos elementos dando o ser; nas plantas, a vida vegetativa; nos animais, a vida sensitiva; nas pessoas, a vida intelectiva.
EE 235
A cosmo-visão inaciana nos conduz a um desenvolvimento das capacidades de admiração e escuta frente ao Universo, a atitudes mais contemplativas, a responsabilidades novas para com o planeta e a vida nele, à compreensão de um Deus dinâmico que ama o mundo, “como Ele age à maneira de quem trabalha” (EE. 236).
O Universo inteiro é um imenso altar cósmico sobre o qual celebra-se, diariamente, a liturgia da vida; ao mesmo tempo, ele é o lugar no qual podemos contemplar e celebrar a presença do Criador, a harmonia dos seres, a comunhão das criaturas. Sobre o altar do mundo se entrelaçam o céu e a terra, de modo que toda a Criação é iluminada pela Eucaristia. Toda a Criação celebra uma grande festa, ao redor da Mesa cósmica.
“Consideração”: “modo de orar” que inspira a viver a “ecologia integral”
Toda espiritualidade que pretenda abordar uma visão ecológica, deverá compreender a pessoa humana não só como parte do mundo natural, mas “habitada” pela Criação. O ser humano não está simplesmente “diante” da Criação; esta está “dentro” dele; afinal, o ser humano procede da “argila” e é constituído dos mesmos elementos físico-químicos da Natureza. Recordemos a feliz expressão de Rubem Alves: “o corpo é o lugar fantástico onde mora, adormecido, um universo inteiro”.
E a espiritualidade inaciana se revela como uma inspiração toda particular para o movimento ecológico integral, sobretudo pelas intuições de Santo Inácio na consideração do Princípio e Fundamento (EE 23), na Contemplação para alcançar amor (EE 230-237) e na Contemplação da Encarnação (EE 101-109). A espiritualidade inaciana oferece um ponto de vista único para viver a “espiritualidade ecológica” e, assim, comprometer-nos na restauração de toda a Criação, no Cristo Ressuscitado.
Inspirados pela metodologia dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio, somos mobilizados a viver a relação com a Criação de uma maneira mais oblativa, hospitaleira e comprometida; a espiritualidade inaciana nos oferece motivações para nos envolver no cuidado da Casa Comum, contribuir na “reconciliação com a Criação”, despertar a virtude teologal da esperança e fazer-nos peregrinos. Peregrinos em direção às dimensões mais profundas de nosso ser e peregrinação comprometida no encontro com os outros e com o universo inteiro.
Esta é a vivência privilegiada na qual buscamos ser sanados de qualquer alienação que possamos experimentar com respeito à Criação; ela ativa nossos impulsos de comunhão para nos sentir irmanados com a diversidade de vida, conectados com a beleza presente em tudo e em todos, cultivando o sentido de reverência e amor pela Terra e todas as suas criaturas. Temos presente que o universo inteiro nos sustenta e habita nosso interior.
Os Exercícios Espirituais nos ajudam a reconhecer a Criação como “ato divino contínuo” e nos mobiliza a “guardar e cuidar” do jardim a nós confiado. Este é o chamado comum a toda humanidade, independente de cultura, raça, religião…
Só quem tem um olhar contemplativo é capaz de desfrutar da beleza de nosso planeta, de descobrir um “valor intrínseco” em todas as criaturas e de superar a visão utilitarista e tecnocrática que domina nosso mundo. Este tipo de olhar não é exclusivo de nenhuma religião ou de nenhuma espiritualidade, embora a mística inaciana possa dar sua contribuição específica.
Por isso, para facilitar a sintonia com toda a Criação, os EE nos apresentam um modo de orar, muito original e inspirador, que nos ajuda a explicitar a expressão “ecologia integral”: a “consideração”, ou “exercício da sabedoria do coração”. Podemos dizer que a “consideração” revela-se como uma atitude contínua de abertura e comunhão com tudo e com todos; ela se manifesta como o fundamento para a vivência de uma “ecologia integral”.
A “consideração” é a porta de entrada da experiência dos EE e proporciona um primeiro olhar amplo, contemplativo, abarcando o grande cenário do Cosmos. Assim se expressa Santo Inácio, na sua Autobiografia, n. 11: “A maior consolação que descobrira então era contemplar o céu e as estrelas. Fazia-o muitas vezes e por muito tempo, porque com isto sentia dentro de si um impulso muito grande para servir a Deus Nosso Senhor”.
Encontramos a “consideração” nos momentos mais densos dos EE: Princípio e Fundamento, Exercício do Reino, Duas Bandeiras, Três graus de Amor, Contemplação para alcançar Amor… O verbo “considerar” aparece 39 vezes nos EE.
A “consideração” inspira e ilumina os outros modos de orar; por isso ela está presente no início de cada oração através da chamada “oração preparatória”.
Na “consideração”, a oração torna-se mais expansiva, pois situa o exercitante em um horizonte instigante, fazendo-o sair dos seus lugares estreitos e rotineiros. Ao mesmo tempo, é uma oração dilatadora: alarga os sentidos, expande o coração, a mente, abre todo o ser da pessoa, ativando nela um sentir-se parte do grande cenário que está sendo “considerado”. Podemos afirmar que a consideração provoca um “sentimento oceânico” no exercitante; uma experiência que o ultrapassa, “vaza pelo ladrão”.
Na etimologia da palavra “com-sideração” encontramos a expressão latina “sidera”, (“sidus, eris” – astro, constelação, sideral, horizonte) que faz referência ao espaço sideral, firmamento, universo… A partícula “com”, implica estar em sintonia, sentir-se parte, perceber-se envolvido por uma realidade que nos acolhe e está sempre mais-além. A “com-sideração” é fazer a experiência de que somos superados: sentimo-nos transportados por uma força ou “moção” que nos ultrapassa e que se sobrepõe a tudo; há uma mistura de distância e atração que a contemplação dos espaços siderais exerce sobre nós.
Nesse sentido, a consideração é um “estar-aí”, gratuitamente, diante da grandeza de Deus, da Criação, do ser humano, de nossa vida, do sentido da nossa própria existência… despertando um êxtase, um assombro, uma, admiração… É um “fazer-nos presentes” por inteiros, deixar-nos conduzir e sentir-nos envolvidos pela “realidade” que nos ultrapassa, restando-nos apenas expressar o louvor, o agradecimento, a quietude…
Por isso, a consideração tem um forte “impacto afetivo”, um “deixar-nos afetar”. Tal ressonância interior é que vai despertar o “ânimo e a generosidade” para empreender o percurso dos EE.
Podemos dizer, então, que é a “consideração” que vai dar calor e sabor aos métodos de oração (meditação-contemplação-repetição-aplicação dos sentidos). Sem a experiência prévia da consideração, ou seja, sem o “impacto afetivo”, o método torna-se frio, racional, perdendo-se facilmente no “detalhismo”.
É a “oração de consideração” que irá despertar o dinamismo do “magis”, presente no Princípio e Fundamento e nos diferentes momentos dos Exercícios: “maior reverência”, “antes mais que menos”, “mais conveniente e muito melhor”, “segundo o maior ou menor proveito”, “é coisa mais digna de consideração”, “os que quererão mais afetar e assinalar”, “vosso maior serviço e louvor”, “para que mais o ame e o siga”, “para mais seguir e imitar o Senhor nosso”, “o que seja mais grato à sua divina bondade”, “a maior glória de Deus”…
É a oração de consideração que alimentará uma contínua atitude contemplativa. O próprio Santo Inácio, na sua autobiografia, afirma que “sempre crescera em devoção, isto é, em facilidade de encontrar a Deus e agora mais que em toda a sua vida. Sempre, a qualquer hora que queria encontrar a Deus, o encontrava. Ainda tinha muitas vezes visões, principalmente de ver Cristo como sol etc. Isto lhe sucedia frequentemente, quando estava tratando assuntos importantes e aquilo que vinha em confirmação” (Aut. 99)
Este testemunho de Santo Inácio indica que a oração de consideração não se restringe só a um tempo de oração, mas se torna um “modo de orar contínuo”. Mesmo no ritmo cotidiano (encontros, trabalhos, descanso…), a consideração pode brotar espontaneamente, inspirando a vida de cada pessoa.
Assim, a oração de consideração é a que ativa e alimenta a “sabedoria do coração”, ou seja, a consciência amorosa e agradecida de que tudo é um grande dom, que somos seres “agraciados”, “cheios de graça” .
Assim expressa Santo Inácio: “… mas pode exercitar-se em buscar a presença de Nosso Senhor em todas as ações, como é conversar com alguém, ir e vir, divertir-se, escutar, entender, enfim, tudo o que fizer-mos; pois verdadeiramente sua Divina Majestade está em toda parte por presença, poder e essência”.
O Pe. Nadal, contemporâneo e profundo conhecedor da “alma” de Santo Inácio, assim se expressa:
É necessário tudo conduzir a Deus, todo ser e toda ação. E é preciso considerar como todas as coisas estão em Deus e agem n’Ele. Nas próprias criaturas é necessário sentir a força de Deus, pela qual Ele pode se fazer compreender, contemplar, amar e adorar pela criatura. Um coração puro, contempla Deus nos sinais e o espelha nas criaturas. Assim, tu sentirás o poder de Deus, sua presença, sua essência e mesmo sua ação.
“Sentir ecológico”: o Universo sente dentro de nós
A espiritualidade inaciana, através da contemplação reverente, nos faz mergulhar nesse “mar cósmico” que se faz transparente para o Divino. “Contemplar Deus em todas as coisas e todas as coisas n’Ele” nos conduz à iluminação, à profunda serenidade e à integração com o universo.
Contemplar é, antes de tudo, mergulhar no louvor do universo, pois “todas as coisas sabem orar antes de nós”, já diziam os antigos padres da Igreja. Orar é ter “sentimento de mundo”.
“O Universo se estremece com assombro no mais profundo da pessoa” (B. Swimme): tal afirmação nos revela uma intimidade talvez não reconhecida, ou seja, que o Universo “sente” conosco, com cada pessoa. Estamos acostumados a vê-lo a partir de nós, como se estivéssemos fora dele; muitas vezes estremecemos com assombro diante da grandeza do Universo, mas, agora, desejamos e precisamos contemplar e acolher o íntimo estremecimento da Vida, do Universo dentro de nós.
Isto só é possível captar quando criamos um espaço de silêncio, ao redor e dentro de nós mesmos, para descobrir o que a Criação deseja comunicar-nos, na intimidade. E se o mundo exterior acaso desaparecesse, qualquer um de nós seria capaz de re-criá-lo, pois a montanha e o rio, a árvore e a folha, a raiz e a flor, toda forma que habita o mundo está pré-formada e pré-existente em nós.
Aqui está o mais verdadeiro e profundo sentido da expressão “ecologia integral”: não se trata apenas de considerar as diferentes dimensões da ecologia numa unidade integrada, mas alimentar uma única sintonia de sentimentos, de intimidade, de interação, de esperança…
Na realidade, para muitos especialistas, preocupados com o cuidado da “Casa Comum”, a grande causa da deterioração irreparável que estamos provocando ao Planeta Terra, é pela “ausência de intimidade”. Ou seja, estamos tão desconectados de tudo que acabamos nos tornando insensíveis, petrificados e indiferentes a toda expressão de vida. Tal desconexão é alimentada por um estilo de vida consumista, seja nas relações humanas, na relação com a Terra, conosco mesmo, e que desemboca no fato de utilizar tudo e todos segundo nossos interesses egóicos.
Durante séculos “pensamos” sobre a Terra; ao tomar consciência que formamos uma única realidade, importa pensarmos “como” Terra, sentirmos “como” Terra, amarmos “como” Terra.
“Em mim flui o universo”. É preciso deslocar o centro de nosso ser para desejar descobrir o autêntico centro de tudo: a Vida.
Todos somos “filhos e filhas da Terra”. Mais ainda, como humanos, somos a própria Terra em seu momento de sentimento, de pensamento, de amor e de veneração. Historicamente cometemos um sacrilégio: rompe-mos a aliança fundamental com todo o universo, quebramos a solidariedade cósmica pela qual nunca existiríamos sozinhos, mas co-existimos e inter-existimos uns pelos outros, com os outros e para os outros. Separamo-nos da comunidade planetária, colocando-nos acima de todos os seres, ao invés de vivermos a comunhão com eles.
A Criação inteira “sente” e intercede por nós (EE. N. 60)
A partir dessa presença unificante, tudo pode ser “sacramental”, ou seja, tudo pode se fazer portador e revelador da Divina presença. Por isso, no coração contemplativo, brota uma atitude de respeito, reverência e de cuidado para com todas as criaturas. Elas são portadoras do “mistério do mundo”, são todas “grávidas de” Deus.
Na primeira semana dos EE, encontramos uma instigante imagem proposta por Santo Inácio e que pode ser inspiradora para compreender e viver uma “ecologia integral”. Ela se encontra no número 60, que é o quinto ponto do segundo exercício da 1ª. Semana; aqui, a natureza inteira revela-se como “intercessora” do ser humano que, através do seu pecado, rompera a Aliança com o Criador, com os outros e com a própria Criação.
Compreendemos facilmente que tanto os anjos como os santos reajam diante do pecado, “intercedendo e rogando por mim”. O surpreendente está justamente em atribuir estas funções de rogo e de intercessão às criaturas como “os céus, a lua e as estrelas, com os elementos, as frutas, as aves, os peixes e os animais; também a Terra que não se abriu para me engolir”.
Em que pensava Santo Inácio ao escrever isto? Como contemplava a natureza e sua relação com o ser humano? Que tipo de sentimento lhe atribuía e, sobretudo, que tipo de função na experiência religiosa do exercitante?
Neste ponto, Santo Inácio antecipa silenciosamente a “Contemplação para alcançar amor”, no final dos EE, integrando no processo espiritual do exercitante todas as criaturas, aparentemente vazias de espírito e de sensibilidade. No entanto, elas se fazem presentes como “intercessoras” no processo de conversão, e revelam uma função ativa, fazendo-se solidárias com o ser humano, apesar da malícia e gravidade do seu pecado, suportando-o, sofrendo com ele e reagindo a partir da única maneira possível para elas: o mundo, em sua essência, é bom, é criatura e toda criatura manifesta espontaneamente sua fraternidade solidária.
Assim como o Criador sente-se afetado pelas grandes rupturas provocadas pelo ser humano, também as criaturas sentem dor frente à situação de pecado da humanidade e se unem à oração dos santos e dos anjos para interceder, sustentar, animar… Assim, o universo inteiro é sentido como organismo vivo, animado pelo amor de Deus que tudo habita, atravessado pela Ruah de Deus, segundo seu próprio e particular modo de existência. Sua essência consiste em expandir a misericórdia de Deus presente em todas as das criaturas e atuando em favor da humanidade; em outras palavras, toda a Criação é também misericordiosa, pois também ela procede das estranhas misericordiosas da Trindade. Também as criaturas revelam uma maneira original de viver em contínuo louvor e reverência para com o Criador, de “pôr o amor mais nas obras que nas palavras” (EE 230), de interceder incessantemente pelos pecadores, de facilitar um processo de “conversão ecológica” e de ativar uma sensibilidade solidária para com todas as expressões de vida.
Tal experiência de comunhão e sensibilidade cósmica desperta no exercitante o impulso para cuidar e respeitar todas as criaturas, pois elas tanto suportaram sua maldade e sua irresponsabilidade e que, diante da possibilidade de condená-lo com justiça, revelam uma paciência assombrosa, aguardando a possibilidade de uma profunda transformação existencial.
Aprofundar nesta visão do mundo, proposta por Inácio, pode nos ajudar a transformar nossa visão da natureza e do nosso entorno que nos possibilita a vida, marcada tantas vezes por uma atitude egóica e distante. Para Inácio, as criaturas são realidade animada, realidade habitada, realidade espiritual e realidade irmã que “com-vive” e “com-sente” conosco e que, portanto, tem forte impacto em nossa história, construindo-a silenciosa e pacientemente. As criaturas também “trabalham e agem por mim”, na medida de suas possibilidades, como faz Deus no “Ad Amorem” (EE 236). A Natureza é uma mãe, uma matriz de energia religiosa (re-liga tudo) que não permanece indiferente diante das violências provocadas por nós, mas que, por sentir-se irmã, religada a nós pelo mesmo amor que nos habita, também se “oferece para colocar-se inteiramente ao trabalho” (EE 96) e agir em nosso favor. O universo inteiro “cons-pira” a nosso favor (co-inspira, respira com, respira a mesma vida).
Com certeza, esta intuição inaciana muda completamente nossa maneira de “sentir e conhecer” a santidade das coisas. Tudo é “templo”, tudo é “sagrado”, tudo procede das entranhas trinitárias e tudo para lá retorna.
Conclusão
Inspirados pela mística inaciana já não é mais possível sustentar as doentias dicotomias entre ciência e mística, mundo físico e espiritual, corpo e espírito, céu e terra, sagrado e profano, ecologia integral e espiritualidade… Abençoados com o dom da espiritualidade inaciana, depende de nós reconciliar os “opostos” em favor da vida do mundo.
A Congregação Geral 35ª. dos jesuítas, ao tomar consciência desta realidade de sérios desafios ecológicos e de novas e profundas intuições sobre a riqueza de nossa herança como seres encarnados, convida a todos aqueles(as) que se sentem inspirados pela espiritualidade de Santo Inácio a “mostrar uma solidariedade ecológica mais efetiva na nossa vida espiritual, comunitária e apostólica. Este convite chama-nos a superar dúvidas e indiferença, e a fazer-nos responsáveis pelo nosso lar, a terra” (Dec. 3 n. 31).
A ecologia integral começa por uma mudança de mentalidade, por uma nova sensibilidade e deve levar-nos a uma simplicidade de vida, não consumista, solidária, defensora dos pobres e da natureza, agradecida ao Deus criador do céu e da terra. Um chamado à conversão que se revela na mudança dos modos de pensar e de agir, dinamizada pela fé no Deus que contemplou o cosmos “e viu que era bom”, alimentada por uma espiritualidade da sobriedade que busca viver bem com o necessário, sustentada pela confiança em que o cuidado do bem comum é condição necessária do bem-estar pessoal.
Desta conversão pode brotar uma atitude de vida fundada nos princípios do destino universal dos bens, a opção preferencial pelos pobres, o cuidado e a proteção de todas as expressões de vida, a justiça distributiva, a solidariedade… Este caminho de conversão é também um convite para todas as pessoas, independentemente de sua religião, a iniciar um diálogo sincero e um caminho compartilhado de cuidado do bem comum.
A conversão ecológica, à qual o papa nos convida, afeta todas as dimensões da condição humana: a relacional, a social, a afetiva, a espiritual…
Uma visão do Cosmos, proporcionada pela mística inaciana, traz naturalmente consigo imagens radicalmente diferentes da natureza, do ser humano, de Deus Não tem mais sentido uma definição religiosa negativa da matéria e de tudo o que se relaciona a ela. Essa é a razão pela qual não se deve falar de “pecado original”, mas sim de “bênção original”.
A consciência da “bênção original” nos convida a uma radical “re-conversão ecológica”, comunicando-nos a visão de um universo em movimento total e contínuo, em expansão e em evolução; não mais um cosmos regido por leis eternas e imutáveis, mas “cosmogênese” que se desenvolve a partir de dentro, como uma flor ou um embrião. Um universo que, ao longo de todo o caminho, ainda se prepara para receber o ser humano.
Na experiência dos EE, o desafio está em despertar a sensibilidade para assumir a Criação como um santuário que deve ser respeitado e cuidado, que é a morada de tudo, que foi a morada do Filho de Deus, e que continuará sendo a morada da Humanidade e de todas as criaturas.
E isso nos move em direção a novas visões, a um novo estilo de vida, a uma nova sensibilidade para viver uma relação sadia com tudo e todos.
Já dizia o jesuíta paleontólogo Teilhard de Chardin que “o progresso da humanidade se mede pelo aumento da sensibilidade para com o outro” e não propriamente pelo crescimento econômico.
Adroaldo Palaoro é padre jesuíta, atua no ministério dos Exercícios Espirituais.
Podcast Rezando o Evangelho | Textos do Pe. Adroaldo
Imagem: Lígia de Medeiros. Natureza Geométrica.
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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.
