A cesta básica e seu tratamento político
Guilherme C. Delgado
A tensão dos preços dos alimentos da cesta básica e seu tratamento político na conjuntura
O tema em consideração não é novo, mas em cada conjuntura que se manifesta, suscita reações específicas sobre seu significado e principalmente sobre como tratá-lo, pelo suposto de que há um problema com múltiplas implicações: sobre a inflação, a segurança alimentar da população, a distribuição de renda e a equidade social de maneira mais ampla.
Mas há também no espectro social e ideológico da sociedade aqueles que mesmo admitindo uma tensão inflacionária localizada nos alimentos, consideram tal situação como ‘normal’, resultante de variações sazonais de oferta e procura, autocorrigíveis pelo livre jogo das forças de mercado. E neste caso, concluem, prescinde-se de ação política específica, pois segundo os áulicos do sistema, tais ações nada corrigiriam, pelo suposto de que nada haveria que corrigir.
Por sua vez, quando saímos do discurso ideológico para encarar as situações concretas, temos muitas evidências clamando por resposta política, que precisam ser devidamente identificadas. Observe-se em primeiro lugar, que a referida tensão inflacionária não é nova, tampouco restrita ao ano de 2024 e início de 2025, mas um fenômeno que se manifesta intermitentemente na nossa história econômica, revelando-se como dificuldade crônica do abastecimento interno. E se consultarmos a história mais recente, desde o Plano Real, veremos que tais dificuldades já se revelavam e que tinham no dólar ultra barato de então a solução mágica do “importar é a solução”. Não vou cansar o leitor com referências mais recentes, bastando lembrá-lo da conjuntura da Pandemia 2020/2022, quadro a inflação geral foi a dois dígitos (entre 10 a 12% a.a.) e a dos alimentos mais que o dobro.
Em segundo lugar, é preciso caracterizar com muita clareza, que a tensão inflacionária dos alimentos da Cesta Básica salarial é recebida de maneira extremamente desigual, quando se confrontam os orçamentos familiares (Pesquisa de Orçamento Familiar-POF-IBGE). O espectro de variação, se considerarmos o peso do gasto alimentar na renda familiar, varia de 50% do orçamento para quem está no nível do salário mínimo, para proporção no entorno dos 5% para quem ganha acima de 30 salários mínimos. E essas proporções ficam ainda mais extremadas, quando se confrontam os muito pobres, sem renda monetária definida e uma elite muito rica dos cem salários mínimos, ou para simplificar a memória – os “sem” e os ‘cem’.
Em terceiro lugar, é preciso denunciar o mito de que não há problema de produção de alimentos no Brasil, já que nas duas últimas décadas teríamos batido todos os tetos de produção agrícola, comparecendo no comércio internacional como grande provedor mundial de alimentos para animais (feedgrains). Mas não obstante isto, os dados de 2022 do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia –COVID-19) revelam 30,7% dos domicílios brasileiros com insegurança alimentar grave (fome aguda) ou moderada, situação que não se deve apenas a Pandemia, mas também ao pico inflacionário entre 2020/2022 já referido.
Ao contrário das aparências a especialização externa brasileira na exportação de commodities agrícolas e minerais, ao deslocar as preocupações com o abastecimento interno para o mercado externo, sem âncora em políticas específicas de abastecimento, joga papel agravante ao problema em consideração. Ademais, para cumprir seu papel protagonista na política agrícola o Sistema de Agronegócio constrói seu próprio espaço nas finanças públicas capturando benefícios fiscais, financeiros e cambiais direcionados às commodities, enquanto as mercadorias que não são mundiais (não commodities) sofrem a discriminação de não contarem com os mesmos privilégios.
Salta aos olhos que o Estado brasileiro não tem tido neste Século organização política e administrativa para regular os preços dos alimentos da cesta básica e suas intermitentes pressões inflacionárias. Negar a necessidade efetiva de intervenção regulatória, em nome da crença na eficácia do mercado livre ou na auto-suficiência da especialização primário-exportadora compõe mitologias de efeitos trágicos. Podem ser fruto de mera desinformação ou mesmo adesão inconsciente ao ideário neoliberal. Em certo sentido, quando tal inação vem de governos com tradição de adesão aos ditames da segurança alimentar, preocupa mais ainda, porque quaisquer que sejam as motivações e crenças envolvidas à não formulação política, tal estado de coisas, pelas suas implicações, contem evidentes sinais de necrofilia.
Mas não posso terminar este artigo, sem pelo menos oferecer alguma pista daquilo que penso, poderia significar intervenção regulatória a que me referi.
Partindo-se da política agrícola história dos Planos- Safra, onde há garantia de preços mínimos, com formação de estoques físicos, não há como se renunciar à formação desses estoques para meia dúzia de produtos alimentares relevantes na Cesta Básica (direta ou indiretamente). Tendo esta posição definida, é necessário que sejam estabelecidas regras condicionais à liberação desses estoques, tendo em vista regular no atacado e no varejo os preços máximos dos alimentos, algo que já se fez eficazmente no Brasil em várias outras conjunturas. Isto é bem distinto de conversas com os empresários de mãos vazias, fazendo-lhes meros apelos retóricos.
Finalmente, é importante admitir que nem tudo se resolve pela regulação do sistema de preços. Para os ‘sem renda monetária definida’, com evidências fortes de insegurança alimentar, precisa-se monitorar permanentemente tais situações com ou sem tensão inflacionária, provendo-se cestas básicas físicas, provavelmente dentro do próprio sistema SUS. A única coisa não recomendável perante tais situações é ‘lavar as mãos’ à maneira de Pilatos.
Guilherme Delgado é doutor em economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Imagem: Glauco Rodrigues. Canibales Brasilis, 1981. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira.
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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

Dr Guilherme, a sua fala toca o coração! Se houvesse interesse, no nosso Brasil, não teríamos, pessoas morrendo de fome e, não teríamos tantos filhos desta Pátria chamada GENTIL, morando em situações extremas na rua. O coração dói e, a gente se sente impotente frente o que vivemos hoje!
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