Misteriosamente me sinto culpado: impulso à conversão ou treta do inimigo?

O Ato Penitencial é um rito obrigatório na celebração da eucaristia de muitas tradições cristãs, inclusive na católica romana. Na oração oficial de tradução brasileira desse momento litúrgico, a fiel e o fiel que a recitam como penitentes, deveriam recordar a Misericórdia de Deus, apesar da culpa pelos seus erros. Digo deveriam porque, na maior parte das vezes, o Ato Penitencial é motivado mais como um levantamento de memórias das coisas ruins pelas quais se acusa diante de Deus, do que um momento de recordação do seu ponto de partida e finalidade primeira: a Misericórdia infinita de Deus. O ponto de partida é a Graça, e não o pecado. A ênfase não pode estar no lugar errado. Infelizmente, costuma haver um grande apego desordenado ao “Por minha culpa, minha tão grande culpa…”.

Talvez essa ênfase equivocada na “grande culpa” se dê porque a maior parte das pessoas experimenta essa experiência. De uma maneira ou de outra, uns mais outros menos, parece que todos nós nos sentimos carregando o peso de nossas culpas. Somos pecadores, disso não há dúvidas.

A Culpa: Impulso à Conversão ou Paralisia Espiritual?

Mas será mesmo que toda experiência de se sentir culpado ou culpada é sempre boa ou mesmo colabora para nosso crescimento humano e espiritual? Você nunca desconfiou que algumas dessas experiências pudessem ser desproporcionais, paralisadoras ou infundadas? Será mesmo que a experiência de vida cristã sonhada por Jesus para suas discípulas e discípulos era fundamentada no peso de tanta culpa? (Mt 11,28-30). Desconfie dos seus sentimentos interiores. Como dizia Santo Inácio de Loyola, busque identificar de onde eles vieram e para onde eles lhe levam. Esse é um bom critério para começar.  

O Pensamento de Jesus sobre Culpa e Pecado

No Evangelho segundo João, os discípulos de Jesus, ao verem um cego de nascença, perguntam ao Mestre: “Rabi, quem errou? Este homem ou os pais dele, para que tenha nascido cego?” (Jo 9,2). Em outras palavras, os discípulos queriam saber: “De quem é a culpa? Dele, ou de seus pais?”. Não é difícil que a pessoa cristã dos tempos de hoje olhe para esse episódio e acredite que se trata de uma pergunta irracional. Como é possível pensar que o homem ou sua mãe e seu pai eram culpados pela cegueira de nascença? A sociedade judaica do tempo de Jesus acreditava que havia uma conexão lógica entre doença/deficiência e pecado, daí a pergunta dos discípulos. A resposta de Jesus contraria essa forma de pensar: “Nem este homem errou nem os pais dele” (Jo 9,3). E, com isso, certamente Jesus não estava dizendo que o cego ou seus pais nunca haviam cometido erro algum e, muito menos, que não possuíam culpa relacionada aos seus próprios pecados. Não é a santidade ou pecaminosidade dessas pessoas sobre o que Jesus está falando nesse texto. Jesus está claramente contrariando a compreensão judaica daquele tempo de que havia qualquer lógica de causa e consequência entre a cegueira do homem e o pecado/culpa dele e de seus pais.

Deus: Amor Incondicional ou Juiz Punitivo?

Jesus faz isso porque ele sabe que a crença de que o homem está cego em razão de seu próprio pecado ou do pecado de seus pais, está fundamentada em uma imagem de um Deus intervencionista, que, quase de forma mágica, castiga os pecadores, causando-lhes algum mal. É uma imagem de um Deus amedrontador que, desde a distância das alturas, “acima de todos”, vigia e pune os humanos que saem da linha. Nada mais distante da experiência cristã de Deus que é absolutamente amor incondicional (Mc 14,36; Rm 8,15; Gl 4,6; 1Jo 4,16-19; 1Jo 4,8).

Quando a Culpa Liberta e Quando Aprisiona

A culpa que é impulso à conversão (metanoia) leva à mudança de mentalidade e ao arrependimento que mobiliza à reparação e à justiça, isto é, leva para a reconciliação consigo mesmo, com os demais e até com a Casa Comum. Santo Inácio de Loyola ensina que um sinal de que algo vem de Deus, é quando seu fruto é a paz de espírito e a consolação espiritual.

O Vício da Culpa e Suas Armadilhas

A culpa que não liberta e repete-se em uma espiral cíclica e viciante, oprime mente e coração. Seu peso é paralisante e aprisionador. Quem a carrega, não abraça o perdão doado na generosidade da entrega apaixonada de Jesus à humanidade (Jo 10,18). A dificuldade de deixar-se amar profundamente e a rejeição, consciente ou inconsciente, à aceitação da liberdade de filha e filho de Deus (Rm 8,21-22), costuma ser resultado de um aprendizado equivocado de indignidade, isto é, trata-se de uma experiência de orfandade e abandono que impede a percepção da radicalidade da filiação divina partilhada por todos e todas, que somos irmãos e irmãs (Mt 23,8). Essa experiência normalmente tem suas raízes nas feridas que a pessoa sofreu na vida e que a marcaram negativamente.

Abrir mão da culpa viciada é libertação de toda uma forma de relacionar-se com Deus que estava baseada nos parâmetros humanos de merecimento, ardilosa estratégia do mal espírito. Cair na conta do amor generoso de Deus de quem somos filhos e filhas para a liberdade (Gl 5,1) é acolher a loucura que é a imensidão do amor de Deus (1Cor 1,18), que não tem lógica, razão e não se justifica, mas apenas é, e é abundantemente (Jo 10,10; Rm 5,20).     

Se a culpa não nos leva para essa experiência de fé e crescimento humano e espiritual, ela é só uma treta do inimigo da natureza humana. Santo Inácio de Loyola, mestre do discernimento dos espíritos, alertava para tomarmos cuidado com o mal que se apresenta a nós na forma de bem. Para uma pessoa mais escrupulosa, sentir-se perpetuamente culpada tem a aparência de bem, pois é para ela um indício do seu constante arrependimento, humildade e consciência de pecado. Nada mais mentiroso e enganador.

O vício da culpa impede a pessoa de seguir em frente e encarar verdadeiramente o mal que ela acredita que cometeu, desapegando-se do peso que ela carrega. Afetivamente, a pessoa está apegada de forma desordenada pelo que se culpa. Esse afeto, para ela, ainda é maior e mais importante do que a acolhida afetiva que ela pode fazer do amor incondicional de Deus, que perdoa tudo. Além disso, muitas vezes, a pessoa viciada na sua culpa encontra nela certa gratificação imediata – assim como o viciado em álcool ou em drogas sente uma passageira gratificação quando ingere uma dose de seu “veneno”. O vicio da culpa pode fazer com que quem o vive experimente uma falsa humildade e, portanto, um certo orgulho por isso. Na espiral da culpa, o mal espírito leva a pessoa a crer que Deus se agrada de sua privação afetiva do perdão de si, como se seu fechamento à superabundância da Graça fosse um sacrifício para se orgulhar. Por isso, é preciso estar atento aos sentimentos interiores para desmascarar as armadilhas do inimigo da natureza humana.

A Relação Entre Sexualidade, Pecado e Eucaristia

Na Igreja Católica, há um prato cheio para essas armadilhas no que diz respeito ao acesso à mesa eucarística e aos que se sentem dignos de comungar. Para muitos católicos, existe um nexo lógico entre sexualidade e eucaristia parecido com o nexo que os judeus do tempo de Jesus enxergavam entre doença/deficiência e pecado. Para os católicos, na verdade, o nexo abarca sexualidade e pecado. É difícil imaginar que Jesus tenha tido tanto interesse pela vida sexual de suas discípulas e discípulos, e que tenha criado tantas restrições para admitir com quem celebraria a Ceia Eucarística. O Evangelho não nos fornece esses indícios.  

Assim como para os judeus daquele tempo as pessoas coxas, aleijadas, cegas, epiléticas, hemorrágicas, deficientes e enfermas de toda natureza eram culpadas de suas condições de vida que traziam uma justa exclusão social e religiosa porque pecaram elas ou seus pais, para muitos católicos, as pessoas solteiras que mantém relações sexuais, ou as pessoas que vivem em uniões sem o sacramento do matrimônio, ou as pessoas que masturbam-se, ou as que são divorciadas e recasadas, ou as que são LGBTs e mantém relações sexuais, todas elas, deveriam sentir-se culpadas e excluídas. Uma vez culpadas, deveriam se afastar da Eucaristia em razão da forma como vivem sua sexualidade. No âmbito católico, é sobretudo nelas que o aprendizado da indignidade desperta para o vício da culpa.

Não é grande o número de pessoas que, por exemplo, pagam propina ou mentem para ganhar vantagem e sentem-se culpadas de sua corrupção e, por isso, afastam-se da mesa da Eucaristia. Também nunca vi alguém que escolhe comprar produtos que ela sabe que fazem mal à Casa Comum sentindo-se culpada e, por isso, afastando-se da mesa eucarística. Mas eu também não acho que esse seria o caso porque essa não era a lógica vivida na Ceia de Jesus com seus discípulos e discípulas. Como recorda o papa Francisco, “muitas vezes agimos como controladores da graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega”. Como diz o pontífice: “Eu nunca recusei a eucaristia a ninguém. A comunhão não é um prêmio para os perfeitos”.

Pense, por um instante, nas pessoas que você conhece na sua comunidade de fé e que não comungam. Lembre-se das fofocas que você já ouviu sobre elas. Por que elas não comungam? Conhece alguma delas que deixou de comungar por uma razão que não seja a vivência de sua sexualidade? Qual é o nexo entre sexualidade e eucaristia? Por que, na prática, a sexualidade acaba sendo praticamente o único tema que provoca culpa viciosa e leva as pessoas a evitarem comungar na Igreja? Muitos judeus de antigamente tinham um afeto desordenado pelas doenças/deficiências como impureza/pecaminosidade enquanto muitos católicos dos dias de hoje estão apegados à sexualidade como impureza/pecaminosidade.

Superando a Lógica Punitiva e a Culpa Viciada

O Padre James Alison, sacerdote católico assumidamente gay, vai muito além do problema da comunhão na Missa e nos alerta para a gravidade dessa lógica que favorece o nascimento do vício da culpa e que foi denunciada por Jesus no Evangelho (Jo 9,2-3). Se alguém, uma garota, por exemplo, é atacada, ela será acusada de ter feito algo de errado para provocar a agressão. E, com isso, infelizmente, as pessoas vítimas de abuso sexual costumam se culparem pela violência que sofreram. Em outro exemplo, se as pessoas pretas possuem baixa condição socioeconômica, elas costumam serem acusadas, mesmo que veladamente, de serem mais estúpidas ou preguiçosas que as demais. E, com isso, o racismo que é um problema estrutural de responsabilidade das pessoas brancas, causa uma série de prejuízos às pessoas negras, dentre eles, danos à apreciação da autoimagem/autoestima. Em ainda outro exemplo, se alguém tem AIDS, isso será considerado como uma punição de Deus por algum tipo de comportamento depravado, especialmente se a pessoa em questão for LGBT. Eis aí, novamente, a imagem do Deus punitivo que Jesus lutou tanto para que o povo superasse.

O Padre James Alison, em seu livro Fé Além do Ressentimento, convida ainda a pensarmos em algumas situações, sobretudo quando somos crianças e, consequentemente, totalmente dependentes de nossos pais: “se algo errado acontece em casa, ou quando nossos pais estão brigando, ou embriagados, ou mesmo se divorciando, então, de uma forma misteriosa, a culpa é nossa. Caso nos comportemos bem e façamos promessas ou votos para Deus, São Judas, ou quem quer que seja, então todas as coisas se ajeitarão. Os psicólogos chamam esse tipo de pensamento de “mágico”, e todos nós temos que aprender, de alguma forma, a superá-lo”.

Superar o pensamento mágico é ultrapassar a compreensão de doença/deficiência como castigo de Deus por um pecado cometido (Jo 9,2-3). É também superar a treta do inimigo entre sexualidade, pecado e Eucaristia. É, por fim, superar toda e qualquer forma de vício de culpa internalizada.


João Melo é professor, escritor e paulistano. Descendente de retirantes da seca de 1915, no Ceará e Piauí; e de apanhadoras de flores sempre-vivas da Serra Negra, em Itamarandiba (MG). É licenciado em Filosofia, bacharel em Teologia, mestrando em Educação na UERJ. Tem livros e artigos publicados em periódicos, revistas e portais digitais. Atualmente, vive no Rio de Janeiro.

Imagem: Lígia de Medeiros. Stairway to heaven. Gravura em madeira e stencil.

Espiritualidade cristã João Melo

João Melo Visualizar tudo →

Descendentes dos retirantes que enfrentaram a seca de 1915 (PI/CE) e das apanhadoras de flores sempre-vivas ao pé da Serra Negra em Itamarandiba (MG). Paulistano que vive no Rio de Janeiro. Autor de “Entre Eva e Mapana” (Editora Pluralidades, 2023) e de livros da série “Ensaios Teológicos Indecentes” (Editora Metanoia, 2024).

1 comentário Deixe um comentário

Deixe um comentário