O oito de janeiro e outros golpes perante a graciosa conscientização do “Ainda estou aqui”
Guilherme C. Delgado
O tema político inevitável nos três meses de janeiro do governo Lula foi e continua sendo a tentativa de golpe de 08 de janeiro de 2023. A diferença fundamental do primeiro 08 de janeiro (2023), para os seguintes já decorridos (2023 e 2024) é sobre a natureza das arquiteturas sob ataque dos demolidores da ordem democrática. No primeiro caso, os objetos da demolição imediatos foram às sedes físicas dos Poderes de Estado, em tentativa visualmente anárquica de criar situação politicamente caótica, que justificasse a decretação de GLO (Garantia da Lei e da Ordem), quando então se consumaria na antevisão das cúpulas a parte golpista sobre as instituições, tese cada vez mais bem corroborada pelas investigações da Polícia Federal durante dois anos.
Por outro lado, embora comemoremos nos dois últimos 08 de janeiro (2024 e 2025) a derrota da primeira tentativa, ora sob crivo efetivo de denúncia do Chefe do Ministério Público Federal da cúpula civil/militar envolvida em vários arranjos golpistas que se comunicam com o 1º 08 de janeiro (2023); observamos concomitantemente outra arquitetura golpista em movimentação, agora visando à demolição de instituição-chave de Estado essencial ao funcionamento da ordem democrática: o orçamento público. Contra este conspiram dois ataques graves: 1) o ataque parlamentar algo anárquico das emendas parlamentares na contramão dos princípios que regem na Constituição Federal à Administração Pública (Art. 37-‘caput’) – legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência, praticamente violados em cadeia pelas referidas emendas, que também se arvoram a substituir o Poder Executivo na elaboração do Orçamento; 2) o ataque organizado do sistema financeiro privado, de conseqüências caóticas sobre as Finanças Públicas, pela manipulação irresponsável da Taxa Básica de Juros (Taxa SELIC), que incide sobre a totalidade da Dívida Pública; à revelia da própria gestão legítima dessas Finanças Públicas pelo Ministério da Fazenda do Poder Executivo.
Observe-se que, o ataque do primeiro 08 de janeiro, embora tardiamente, está efetivamente em vias de julgamento pelo STF. Mas os outros dois ataques, principalmente o último deles, contam com escudos protetores que aparentemente os tornam incólumes ao enquadramento republicano e constitucional.
Diga-se de passagem, a bem da correta informação, que o ataque ao interesse público oriundo do Parlamento, por meio de emendas parlamentares inconstitucionais, já é objeto de judicialização pelo STF, muito embora o Congresso não demonstre maior interesse em mudar de pauta.
Por sua vez, o ataque do sistema financeiro privado às Finanças Públicas, no formato da manipulação para o alto da taxa básica de juros(SELIC) continua em plena evidência, sem controles ou regulação da despesa financeira que produz; não obstante capturar previsivelmente a cada 1% de juros elevados algo e torno de 72,0 bilhões de reais transferidos aos detentores de títulos da Dívida Pública Federal, ou seja 1% sobre um estoque Dívida Pública Federal de 7,2 trilhões de reais em 30 de novembro de 2024. E basta uma reunião do chamado COPOM (Conselho de Política Monetária), como a última de dezembro, que assim o fez, prometendo dois novos cavalos de tróia às duas próximas reuniões, o que se mantido geraria um incremento total de 216 bilhões de reais à Dívida, transferidos aos proprietários da riqueza financeira, sob orquestrado apoio da mídia e nenhuma análise crítica das implicações mais gerais.
A opinião pública, com as exceções de praxe, está devidamente informada sobre golpe do tipo 1 (o8/01/2023); mais ou menos informada sobre o golpe parlamentar do tipo 2, que consegue entender como espécie de ‘crime desorganizado’. Mas o golpe financeiro do terceiro tipo, capaz de manietar completamente as Finanças Públicas, sequer passa na cabeça das pessoas sobre a gravidade de suas conseqüências e do tamanho dos recursos que manipula.
Mas finalmente, creio que precisamos avisar aos novos e velhos golpistas, que a experiência existencial do “Ainda estou aqui” movendo por tantas décadas a família de Rubens Paiva, Eunice Paiva, filho e filhas, magistralmente interpretado pelas atrizes Fernanda Torres e Fernanda Montenegro; consegue despertar na consciência da sociedade um sentimento forte de justiça e da solidariedade para com as vítimas da ditadura, que bate de frente contra todos os golpismos que descrevemos neste artigo. Praticamente o expectador do “Ainda estou aqui” muda sua mentalidade, fortalecendo um “Ainda estamos aqui”, essencial à resistência democrática.
O filme, assim como o livro escrito pelo filho Marcelo Rubens Paiva, denuncia a partir da experiência existencial, todas as formas de golpear a justiça, revelando com toda verdade o drama de uma família massacrada pela ausência do pai, em uma época em que as instituições de direito estavam cerceadas pelos golpistas do tipo1. E a luta para o enquadramento desta gente envolvida em demolição da democracia ganhou notório apoio público, a ver pelo enorme sucesso de bilheteria do filme.
Guilherme Delgado é doutor em economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Imagem: Vik Muniz. Resistência democrática. Arte mista com destroços do 8 de janeiro de 2023. [veja o vídeo]
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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

Uma observação ao texto:
Eunice Paiva foi magistralmente interpretada no filme por duas atrizes maravilhosas: Fernanda Torres e Fernanda Montenegro.
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Correção feita no texto.
“magistralmente interpretado pelas atrizes Fernanda Torres e Fernanda Montenegro”
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