E aí, qual é a sua consigna?

Claudio Cassimiro

Quem fui é externo a mim. Se lembro, vejo;
E ver é ser alheio. Meu passado
Só por visão relembro.
Aquilo mesmo que senti me é claro.
Alheia é a alma antiga; o que em mim sinto
Veio hoje e isto é estalagem.
Quem pode conhecer, entre tanto erro
De modos de sentir-se, a própria forma
Que tem para consigo?

Fernando Pessoa

Ao orientar os Exercícios Espirituais de Santo Inácio para um grupo de pessoas que vivem a espiritualidade inaciana na sua cotidianidade, Comunidade de Vida Cristã (CVX), e que têm um modo próprio de ser e viver, existe da minha parte uma percepção dos lampejos extraordinários que o Senhor oferece a cada um e cada uma nessa experiência de intimidade com Ele.

Assim ao adentrar na experiência distribuída de forma didaticamente chamada semanas, percorre-se um itinerário de intimidade, de abertura ao que o Senhor vai falar, vai pedir, vai indicar ou mais simples ainda, escutar o que tenho a dizer de forma a me ajudar a entender a minha dinâmica pessoal na minha própria relação com Ele.

Nesses dias de orientações, as pessoas ali presentes puderam dedicar uma atenção maior ao olhar. A proposta era que pudessem olhar para Jesus sem desviar o próprio olhar e percebessem os sinais do seu olhar para consigo. “O nosso olhar se dirige a Jesus, o nosso olhar se mantém no Senhor”, esse foi o mantra que nos ajudou a rezar a matéria oferecida.

Então, por isso é sempre bom fazer o pedido de graça: Senhor que eu saiba estar atento à tua voz e ao teu olhar, e que não desvie o olhar de ti.  O bom é que Ele está sempre presente também escutando e olhando para nós. É muito claro para quem orienta e acompanha que o processo de escuta é salutar nessa experiência. Escuta que se dá no silêncio e na intimidade, na abertura para assim também escutar as vozes interiores e a voz do Senhor no meio de tudo isso.

Nesse sentido, como a comunidade tem um modo próprio de proceder e viver essa espiritualidade, é sempre mais fácil usar uma linguagem usual e que todos de certa forma entendem, ou pelo menos compreendem, pois já tem lugar na mente e no coração de cada um, cada uma. Mas a dinâmica do orientador pode extrapolar, oferecer desafios para que não permaneçam na mesmice, ou ajudar a perceber que fazer os Exercícios Espirituais de Santo Inácio (EE) não seja só obrigação dos documentos que regem a Comunidade de Vida Cristã e sim uma experiência de resposta, de mudança, de maior intimidade e de comprometimento com o outro.

A partir daí, fazer os EE anualmente faz parte do modo de proceder de qualquer membro da CVX “são fundamentais e constitutivos na vivência da vocação CVX”. Deveria ser um tempo de graça, tempo de escutar a voz de Deus, veja o que nos diz o número 44 do Carisma: A comunidade fiel ao espírito inaciano que a inspira, deseja que seus membros sejam pessoas ágeis em espírito, pessoas que se exercitam constantemente para escutar sem demora os chamados de Deus e responder a eles com todo o seu ser.

Então, os EE têm um papel fundamental na eleição de um estilo de vida cristã: o discernimento vocacional a CVX.  “Os EE não são uma experiência que “culmina” ao término da vida apostólica, mas uma experiência inicial decisiva para a opção apostólica pessoal, que se irá atualizando ao longo de toda a vida” (Carisma nº 39 e 51). Assim ao longo da vida comunitária isso pode ser alimentado e realimentado, discernido constantemente a partir da partilha e de uma amizade com o Senhor e no Senhor.

Com tudo isso posto, temos ainda como pano de fundo alguns textos que poderiam nos ajudar a fazer os EE e, ao longo da experiência, perceber o momento, o “instante”, o “premente”, o que está chegando no tempo de oração pessoal. E isso pode permanecer ao longo do ano, ou do novo ano que se instaura a partir dos EE feitos naqueles dias desejados e escolhidos por cada um, cada uma; e de modo muito particular seria bom que déssemos conta da nossa consigna. Que fizéssemos uma retrospectiva após a nossa eleição ou reforma de vida e encontrássemos algo que fosse significativo, uma palavra de ordem que regesse a nossa vida de agora em diante. Requer realmente abrir-se ao que o Senhor me diz e, ao mesmo tempo, ler nos lábios dele essa palavra de ordem.

Mas o que é consigna?

Fui atrás dos alfarrábios de um padre jesuíta chamado Cabarrús. Pedi a ele que pudéssemos dialogar para explanar sobre esse termo que propus na orientação do retiro de oito dias dessa comunidade de vida cristã.

Ele com muito bom grado aceitou meu convite, vamos lá.

– A proposta é buscar uma consigna que passa pela vivência dos EE desses oito dias – uma experiência de presença – intimidade. Mas para quê? Para talvez, mensurar, ficar “antenado” e assim não perder o fim para o qual fomos criados e ao mesmo tempo ainda ser o ponto inicial do próximo EE que fizermos. Sendo assim, os EE “são um lugar onde se pode detectar – graças aos retos discernimentos, onde posso trazer a luz a minha consigna.

– Que tal?

– Pode ser sim.

– Para começo de conversa, mas o que é, então, esse termo tão significativo?

– “Chamamos consigna à experiência de receber a “formulação” ou a colocação de um nome a essa moção principal pela qual o Senhor foi impulsionando e conduzindo o/a exercitante. Essa vivência costuma se revelar à pessoa de maneira clara e indiscutível; experimento que procede de Deus, porque tem características que concretizam o que é do Reino (cf. Mt 25,31ss; Lc 6,36; Lc 9,23), sem excluir a própria pessoa como destinatária dessa moção.”

– Vamos dar mais um passo nesse entendimento sobre consigna.

– Nesse sentido fazemos inovação na terminologia inaciana. Crê-se, então, que poderia ser a tradução que Inácio chamou de “eleições secundárias”. Mas podemos aproveitar o termo que tem sua origem no meio político. “Uma consigna política é dada, é uma ordem da direção. Por si, corresponderia aos interesses de um povo, as suas necessidades e possibilidades. Ela é pragmática: está toda ela orientada para as práxis sugerida por ela mesma. A programática: dela podem derivar projetos que respondam às necessidades a partir de um objeto formal. E por fim a ela gera identidade, rumores, é breve e repetida. A finalidade de uma consigna é que seja eficaz, que gere tudo o que anuncia. Contudo, nem sempre sucede assim. A consigna política anuncia o futuro.”

– Mas, e a consigna do Espírito?

– Já a “consigna do Espírito assemelha-se em muito a essas consignas políticas, porém tem uma série de elementos específicos que convém esclarecer.”

– Você pode nos esclarecer para entendermos melhor?

– “Ao me dá-la, o Senhor revela-me o ‘modo’ como quer que eu conduza minha vida. É importante notar que por ela conheço o modo primordial pelo qual o Senhor se revela a mim. É Ele quem, por excelência, cumpre o que me convida a realizar pela consigna. Se me impulsiona a confiar é porque confiou primeiro. Ele me dá exemplo para daquilo para qual me convida. É o que me assemelha ao seguimento de Jesus. É o que, em suma, evita que se satanize um estado de vida, uma estrutura, uma eleição. Impede que eu aburguese. Por si, gera movimento. Esse movimento não é produzido por mim, só reajo a ele: bem ou mal, em alianças ou em recusas, com interesse ou desconfiança. Se me deixo conduzir por ela, o Senhor fará em mim maravilhas que não me são outorgadas para o enriquecimento de minha pessoa, mas para o trabalho pelo Reino de Deus.”

– Mas como pedir essa consigna?

– “Convida-se o exercitante a pedir essa consigna em clima de primeiro tempo, isto é, que se imponha por si mesma, sem duvidar nem poder duvidar. […]. O Senhor não se faz rogar: Ele mesmo coloca o selo e nome ao movimento – moção – que já desencadeou em nosso interior para lançar-nos na ação ressuscitadora do mundo.”

– Tem uma maneira de diferenciar?

– Contudo, é preciso ter cautela, saber separar o dado pelo Senhor – sem duvidar nem poder duvidar – do “nosso discurso”, sendo, assim, fiéis à regra oitava da segunda semana (consolação sem causa). […].

– Então passa pelas nossas moções enquanto estamos fazendo EE?

– “Uma vez enunciada por Deus a consigna, o que é sumamente rico e revelador é rever – com essa luz – as moções anteriores e cotejá-las com ela, inclusive para uma comprovação. Tudo adquire novo brilho e sentido. As moções porventura desconexas adquirem convergência, fazem eco à consigna.”

– Mas, o que mais deve ser levar em conta para ter essa clareza?

– “… estudar de como se reagiu diante dessas moções – que agora se aglutinam na consigna – e levar em conta que só na medida em que tenhamos nos deixado levar é que progredimos; e quando não colaboramos, ou nos fechamos, retrocedemos no seguimento de Jesus.”

– Ela tem algumas características, não é?

– Sim; são algumas características da consigna: provém de Deus; possui certo caráter imutável; os projetos da vida que dimanem dela, sim, podem modificar, não, porém o que os origina.

– Tem mais…

– “A consigna conduz indiscutivelmente às coisas de Deus e de seu Reino: vê-lo nos necessitados (Mt25,31); ter coração de misericórdia (Lc 6,36); e estar disposto a dar a vida por tudo isso (Lc 9,23), sem excluir a própria pessoa como destinatário dessa moção.”

– Que mais se pode falar da consigna?

– Uma outra característica da consigna: “se transforma em minha ‘petição’ e oração fundamental: não é uma ordem, mas algo como uma ’insinuação contundente’ que Deus me oferece. Tal insinuação eu a posso descartar ou transportar para uma petição básica porque resume toda a minha vida e lhe dá convergência, sentido e firmeza. Com minha consigna, assim transformada em petição, lanço contínuos pedidos de mais graças, de mais auxílio, é como uma jaculatória estratégica!”

– Qual imagem podemos fazer da consigna?

– “A consigna tem uma representação mental, uma imagem que se dá concomitante a ela. Evocá-la é restabelecer a ‘composição do lugar’ prototípica pessoal. Igualmente, a consigna implica uma repercussão corpórea. Essa posição do corpo nos indica, ao mesmo tempo, a posição pessoal de orante por excelência. […]. Colocar nossa imaginação na cena da consigna e adotar a postura do corpo que se desprende dela são nossas pequenas ‘adições’. Nossa postura colabora para que a moção, a consigna, aconteça.”

– Então não é uma ordem?

– “A consigna é uma insinuação, e não ordem. Normalmente, a formulação tem certo caráter imperativo, porém respeita absolutamente a vontade, nem mesmo se impõe. […]. É preciso insistir muito no fato de que não é provocada por mim, não é um lema ou propósito que eu ponha. […]. Outro traço característico é que se transforma no critério essencial de meu discernimento. […]. Se algo me aproxima dela, posso supor que vem de Deus, o que me afasta ou me distrai é pelo menos suspeito.”

– Então é na bandeira de Cristo que está a consigna?

– É aqui vem outra característica: “é o que me coloca sob o estandarte de Cristo. Faz-me conhecer os ardis, pode varrer minhas babilônias, impede-se terceiras posições a respeito do seguimento. […].”

– Entendo que é norteador?

– Sim.” […]. O terceiro grau de humildade é a consigna vista a partir do final, a partir de suas máximas consequências. A consigna poderia ser considerada como a bússola de meu caminho, uma vez que indica e orienta rumo a meta. Mais que bússola, é como míssil dirigível: situa-se em coordenadas, persegue e tem força em si mesma.”

– A consigna está desde o começo de nossa experiência dos EE?

– Sim. Veja bem! “Seria inicial assim como o Princípio e Fundamento. A consigna – moção espiritual central – vincula-se ao Jesus pobre e humilde na história. Ali, então, conecta-me a outra força que se pode transformar em algo quase físico: é o desafio que vai estabelecendo para mim o povo pobre que quer se libertar. […]. Já não serão tão-só desejos – colocados pelo Senhor em meu coração – que me farão caminhar no seguimento, mas os próprios desafios, as consequências dos pequenos compromissos que irão me impulsionando e aproximando do terceiro grau de humildade. Esse movimento é o que chamamos ‘moção histórica’. Em congruência com cada biografia humana cabe detectar como se formula essa moção.”

– Podemos estabelecer um paralelo entre a consigna política e a do Espírito?

– Claro que podemos sim. Fazendo uma comparação da consigna do Espírito com a consigna política temos um paralelo bem sugestivo:

  1. Nossa consigna é dada por Deus. É simplesmente a formulação em palavras do que Ele sempre realizou. Não a posso atribuir a mim de modo algum.
  2. A consigna me vem ad hoc, é para mim, só eu a entendo. Conta com as minhas debilidades e qualidades, considera meu pecado. Engloba-se totalmente, tudo converge em mim.
  3. É também pragmática porque se orienta para a prática que tem de levar-me ao terceiro grau de humildade e conectar-se com a moção histórica.
  4. É programática, enquanto a partir dela se pode estabelecer projetos adaptáveis às diversas circunstâncias.
  5. Gera minha identidade, me unifica, é minha petição, ouça-a interiormente.
  6. Sobretudo – e aqui existe uma forte diferença – nossa consigna é “eficaz”, com uma efetividade já demonstrada. Não é anúncio futuro, porém algo já dado. É com a palavra do Senhor que não é vazia. Fecunda sempre, se lhe damos espaço.
  7. A consigna do Espírito nunca se deve aquietar, mesmo dentro da moção da história. Aqui, mais ainda! A tarefa histórica sempre volta a ser objeto de babilônias, ardis, procura de interesse próprio, extrema soberba. Só na dialética entre a moção do Espírito e a moção da história se progredirá no seguimento de Jesus. Tal é a síntese profunda entre fé a justiça.

E aí qual sua consigna? Conseguiu perceber na sua última experiência? Senão poderá ler esse pequeno texto e tirar algumas dúvidas que possam existir.

Conclusão

E aí qual é a sua consigna?

Enfim é um pretexto nesse texto para que você, que ainda não se “deu conta” da sua consigna, possa no próximo EE se inteirar e deixar-se envolver por esse tema que ajuda a discernir e a caminhar pelas veredas da vida. Não tenha pressa e nem tenha medo. O Senhor talvez tenha lhe falado sempre, e você até já a vive.


Referência

Cabarrús, Carlos Rafael. Sob a Bandeira do Filho – roteiro para um mês de retiro com ênfase na justiça. São Paulo. Edições Loyola, 1997.


Claudio Cassimiro é leigo, pertencente à Comunidade de Vida Cristã (CVX), CVX Cardoner, São Paulo (SP).

CVX: Uma Vocação

Imagem: Lígia de MedeirosAzulejo Basculante.

Comunidade de Vida Cristã (CVX) Espiritualidade cristã

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

3 comentários Deixe um comentário

  1. É bastante instigante e provocador. Remete me ao encontro das afeições desordenadas. Aplainar, nortear e fazer o encontro com o Espírito Santo, trazendo luz aos desígnios de Deus para viver a sua vontade. Creio.

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