Gente com nome de bicho e passarinhos livres
João Carlos Pereira
Alguns temas de crônica rendem mais, bem mais, do que posso imaginar. Jamais pensei que a história do papagaio da Eneida, chamado de José, iria dar voltas na imaginação dos leitores. Muita gente me escreveu, falando dos nomes de seus bichinhos, um mais humano que o outro. Muita gente lembrou dos seus totós e miaus com nomes de bichos e, diante de uma lista enorme, me veio à lembrança uma fato que ganhou repercussão nacional, em que uma pessoa perdeu uma parada justamente por ter nome de cachorro.
Hélio Gueiros – o doutor Hélio, como quase todo mundo o chamava – era governador do Pará e não tinha papas na língua, como também não usava trava dos dedos. Quando gostava de uma pessoa, seu texto era de uma delicadeza ímpar. Se não topava com o camarada, saísse de baixo. Pois foi justamente um sujeito com um nome um tanto impróprio que resolveu atravessar o caminho do Dr. Hélio. Na época, ele representava todos os paraenses indignados.
A demanda envolvia produção de lixo atômico, que seria mandado para uma espécie de “lixeira”, no Grão-Pará. A idéia nasceu da cabeça do sétimo presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear, Rex Nazaré Alves. Certo de que o Pará era casa da mãe Joana e de que poderia fazer daqui o quisesse e bem entendesse, anunciou a criação de um depósito de resíduos nestas terras. Pra quê?
Assim que a notícia chegou, numa época em que internet não existia, o Governador teve um ataque de fúria. “Aqui mesmo, não!”, berrava Hélio Gueiros. “No Pará ele não vai jogar lixo atômico nenhum e está acabado”, determinava. O bate-boca atravessou as alturas da serra do Cachimbo, onde o tal depósito seria criado, e alcançou os gabinetes de Brasília. O bafafá estava armado.
De um lado, o tal Rex Nazaré insista em mandar o lixo para cá; de outro, o Governador fincou o pé e garantiu que ele não depositaria um grama de lixo no chão do Pará. A temperatura política já produzia mais do que mal-estar, quando uma frase de Hélio Gueiros encerrou a questão. Depois de assegurar que o Pará não seria transformado numa lixeira, disse que não falaria mais nada, porque não ia dar trela para um homem que tinha nome de cachorro.
O lixo atômico nunca veio para cá e Rex Nazaré entrou para a história carregando uma derrota política, a partir de uma decisão maluca, e pelo fato de o Governador do Pará haver dito o que todo mundo sabia, mas preferia calar: o homem tinha mesmo nome de cachorro: Rex.
Isso lá é nome que se dê a uma criança? Imagina o quanto mangaram dele no colégio, estalando os dedos e chamando-o como se fosse um cãozinho: Rex, Rex,Rex, vem cá, Rex…. Se fosse eu, quando tivesse idade, trocaria na hora. Seria João Carlos. João, por causa do papa João, e porque meu pai achava este nome muito bonito, e Carlos, em homenagem ao meu primo Carlos Coimbra. Tirando a referência a São João XXIII, essas foram as razões para eu ter sido batizado com esse nome.
A outra história não tem a ver com nome de bicho, mas surgiu por causa do papagaio da Eneida. Quem me contou foi a querida amiga Dra. Célia Cavalcante que, como eu, não suporta bicho preso ou passarinho engaiolado.
O fato se deu em Mosqueiro, onde ela e o marido, Dr. Ophir Cavalcante, possuíam uma casa muito aconchegante. Uma noite, o porteiro, “seu” Martinho, foi procurar o patrão, pedindo para soltar o filho que havia sido detido. O motivo não conheço, mas deve ter sido coisa leve, como arruaça ou cachaçada. Dr. Ophir entrou na delegacia e soltou o rapaz. No dia seguinte, a criatura apareceu com um curió para dar de presente ao seu benfeitor.
Diante do bichinho preso, o advogado teve uma reação que serviu de lição para o passarinheiro. “Olha, ontem eu consegui a tua liberdade. Hoje, tu vens aqui e me trazes um pássaro preso. Eu gosto muito de ouvir o canto dos passarinhos, mas soltos, na natureza. Desculpa, mas também vou dar liberdade para este curió”. Abriu a portinhola e o soltou.
Quando eu era criança, o irmão mais novo de meu pai tinha o estranho hábito de pegar passarinhos no mato e mantê-los presos em gaiolas penduradas no terraço que dava para os fundos de casa. No quintal, havia um pé de abacate e outro de goiaba, além de um limoeiro que nunca floriu. Os bichinhos olhavam para as árvores e deveriam sentir uma enorme vontade de voar. Um dia, não sei que coragem me deu, abri todas as gaiolas, de onde saíram para nunca mais voltar.
Desde então, nunca mais aceitei bicho preso. Se o que eu mais prezo na vida é minha liberdade, como vou agir diferente, mantendo cativas criaturinhas que, como eu, nasceram com vocação para a vida sem grades ou fronteiras?
Belém, 28 de setembro de 2020.
João Carlos Pereira (Belém do Pará, 1959-2020) jornalista, escritor, professor, membro da Academia Paraense de Letras.
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Imagem: Alvaro Vaz (1964-). Bichos, 1988. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
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