Fala, Senhor, teu servo escuta

Annamaria Wolter

Fala, Senhor, teu servo escuta

1 Samuel 3,9-14

Nasci numa quarta-feira de Cinzas.

Minha mãe estava no finalzinho da gravidez e era Carnaval. Ela se ofereceu para ficar com os sobrinhos pequenos para que seus irmãos dessem uma voltinha pela cidade naqueles alvoroçados dias de blocos e Corsos, um tipo de agremiação carnavalesca que desfilava com carros. 

Acabada a folia, nasci. 

Na década de 1940 havia um clima quaresmal pra lá de cinzento mesmo, mais de sofrimento do que de piedade e de conversão. Mas em que cabia, certamente, a alegria pela menininha que chegava, depois de dois meninos bem pequenos. Uma escadinha! Minha mãe, da Congregação das Filhas de Maria desde muito jovem, me consagrou a Nossa Senhora da Imaculada Conceição, dando-me o nome de Maria e o de sua mãe, Anna – Annamaria. 

Fui batizada aos quatro meses na missa de cinquenta anos de casados de meus bisavós. Nas Bodas de Ouro, eles me apresentavam à comunidade paroquial que frequentavam assiduamente. Chamados carinhosamente de Lico e Neném, eles mesmos me contaram da Igreja cheia, decorada com muitas flores, e as filhas – minha avó materna e as tias-avós com seus maridos, filhos e já alguns netos – materializando a bondade e a devoção na família que cultuava especialmente a Nossa Senhora de Fátima. Meus bisavós moravam no Andaraí. Depois da renovação dos votos de compromisso do casal, a casa de varanda e quintal no subúrbio carioca virou uma festa. Outros parentes, vizinhos, quase a rua inteira queria testemunhar aquele amor tão bonito!

Nasci e vivo no Rio de Janeiro. De família católica, sem dúvida, mas eu mesma com uma fervorosa devoção a Maria que passava ao largo do amor a seu Filho. Frequência sacramental sem ter noção de nada. Lá ia eu de anjinho nas celebrações litúrgicas, com “muita reza e pouca missa”, como ensinava o antigo ditado. Fiz a primeira comunhão aos sete anos, vestida de noiva no organdi que espetava, respirando o ar de santidade que as crianças experimentam nesse dia especial. Crisma na Candelária, sem nenhuma preparação. A gente se inscrevia, apresentava a certidão de Batismo e estava marcada a data e a hora com o Bispo. Era só chegar com a madrinha. Era assim… 

Aos poucos, mais velha, passei a frequentar a Igreja. Em 1974, fiz Cursilho de Cristandade e, em 1977, Encontro de Casais com Cristo. Motivada pela carta de Pedro, comecei a cursar Teologia para conhecer as razões da minha fé: 

Antes, santificai ao Senhor Deus em vossos corações; e estai sempre preparados para responder com mansidão e temor a qualquer que vos pedira razão da esperança que há em vós.

1Pedro 3,15

A cada dia que eu passava lendo, estudando, mais me sentia interessada e envolvida nas coisas de Deus. Era muito engraçado, nesse curso, que vez por outra algum aluno interpelava aos professores com questões como “mas isso não era assim, era desse outro modo…” e eu ficava muito feliz em desconhecer aqueles outros arcaicos saberes, cheios de rigor e ritualismos vazios. Eu estava vivendo o Concílio Vaticano II e a Conferência Episcopal de Puebla, graças a Deus!

Uma noite, numa palestra na paróquia, tive a felicidade de conhecer um grupo de pessoas que começava um trabalho pastoral na Arquidiocese do Rio de Janeiro: Anninha e Ary Penalber, Lurdes e Adriano Vaz e Teresa e Paulo Andrade. Eu tinha 34 anos. Um grande desejo de servir como eles me empurrava para frente! Engatei na pastoral que criavam no antigo complexo penitenciário da Rua Frei Caneca, no centro do Rio.  O meu trabalho pastoral teve inicio na Penitenciária Milton Dias Moreira. Íamos duas vezes por semana, logo depois do jantar dos internos e antes do “confere”. Rezávamos, cantávamos, mas principalmente ouvíamos suas histórias de vida. Eu vivia atenta às emoções, aos sentimentos doídos, às heranças trágicas que legavam aos filhos, às mães, às esposas, a todos os amigos que tinham deixado “na rua”.

Passei a frequentar o presídio nas visitas de domingo para conhecer as famílias dos internos. Consegui ver outro horizonte, entendendo, ou procurando entender, como praticamente a falta de tudo, a miséria, a desigualdade e a estratificação social levavam aqueles homens, tão moços ainda, a uma grande revolta e muitas vezes ao crime, pois que muitos daqueles presos ali estavam ainda sem processo e julgamento…

Naquela época, por volta de 1980, nenhum de nós tinha escutado falar em Santo Inácio e nos Exercícios Espirituais. Mas parecia que estávamos sendo preparados para viver a experiência inaciana… Éramos dispostos à escuta qualificada e ao acompanhamento espiritual que viríamos a abraçar. Contudo, essa espiritualidade me esperava. 

E fui topar com Santo Inácio no projeto de um dos colégios em que trabalhei – no Paradigma Pedagógico Inaciano. Sendo professora desde os 19 anos, nunca poderia imaginar o que estava para acontecer comigo: fui conhecendo a história da conversão de Inácio de Loyola e me encantando com ele. 

Numa viagem nas férias escolares de 1995, saindo de Valladolid para San Sebastian, na Espanha, um pequeno símbolo na estrada chamou a minha atenção. Indicava um santuário por perto e resolvi tomar o caminho imprevisto. Curiosa, fui até Azpeitia/Loyola. Era o Santuário de Santo Inácio de Loyola! Fiquei boa parte do dia por lá, querendo saber de tudo, ver tudo. O quarto onde Santo Inácio esteve em sua recuperação era, então, a capela do Santíssimo.  Foi um acontecimento que marcou a minha vida. Na volta das férias, seduzida, fiz um Retiro de Iniciação aos Exercícios Espirituais. O colégio convidava e fui feliz para a Casa de Retiros Padre Anchieta, em São Conrado. 

Era final de retiro quando vi Teresa Andrade e Lurdes Vaz na casa. Uma surpresa e tanto! Desde que tínhamos sido descredenciados pelo então DESIPE e impedidos de trabalhar na Pastoral Penal, aconteceu um afastamento no grupo que nós não pretendíamos. Eu com trabalho, filhas, mãe e avó morando comigo, não tinha mais muita disponibilidade para quase nada. E olha o que Deus queria me mostrar! Eu, terminando meu primeiro retiro e elas com uma caminhada inaciana de alguns anos. Encontro preparado! Os Exercícios que experimentara deram sentido àquilo que eu vinha vivendo desde criança: vi na minha família a fé sólida e o estilo de vida simples. 

Da tardinha daquele domingo até conhecer a Comunidade de Vida Cristã (CVX) não demorou muito. Tudo aquilo que me abrasava o coração estava na Comunidade. Viver em Comunidade seguindo o chamado para a Missão – A Igreja nas casas. A Igreja que nasceu nas casas reunia-se para celebrar, em pequena comunidade, a memória de Jesus Cristo em ajuda mútua, partilhando do pão numa realidade humana profunda, tecida na amizade, na caridade, na confiança – ali estava a vida enriquecida pela descoberta da minha vocação:

Suporta as demoras de Deus; dedica-te a Deus, espera com paciência, a fim de que no derradeiro momento tua vida se enriqueça.

Eclesiástico 2,3

Sou membro da CVX Virgem Oferente há 24 anos. Uma vez que a função da comunidade é, basicamente, a de discernir a missão, vejo minha vocação “desenrolando-se” ali e partilho como ela vem sendo concretizada na vida cotidiana. 

São anos que me comprometeram no projeto de Deus, alimentaram minha fé por meio da Sua Palavra, da oração diária, da troca de experiências de vida e do acompanhamento espiritual. Mas, especialmente, anos em que me tornei atenta ao inesperado. Deus se fez homem em Seu Filho! A Virgem concebeu. Tudo no inesperado de Deus. Um dos conselhos do Papa Francisco em sua Catequese sobre o Discernimento* é exatamente esse:

Dou-vos um conselho, prestai atenção às coisas inesperadas.

Inesperadamente uma amiga querida da CVX São Marcos, Ana Sérgio, me convidou para conhecer o projeto Cozinha Solidária, em Botafogo – a Cozinha Solidária é tocada por voluntários, sendo um espaço de preparação de refeições para pessoas em situação de rua, vulneráveis, desvalidas. Juntas, visitamos a Associação Sholem Aleichem** (ASA) no espaço cedido à cozinha ainda em obras. Conhecemos os responsáveis e logo muitos membros CVX se uniram à Ana Sergio para as doações e a divulgação da iniciativa. Teresa Andrade e Lurdes Vaz, sempre elas, foram das primeiras colaboradoras. O sonho de Deus, de fraternidade e de amor, vai sempre se desdobrando e nos envolvendo… Este, agora, é também meu projeto de vida na missão que vai se mostrando nova, porque Jesus é o Deus dos pobres. Tenho a certeza de que tudo o que tenho experimentado nasce dessa atenção às coisas inesperadas. De convite em convite, é o Senhor quem me chama: 

Fala, Senhor, teu servo escuta.

1 Samuel 3,9-14

* Papa Francisco – Catequese sobre o Discernimento 2. Audiência Geral, Praça São Pedro, quarta feira, 7 de setembro de 2022
** Sholem Aleichen, em ídiche “a Paz esteja convosco”.


Annamaria Wolter é leiga, pertencente à Comunidade de Vida Cristã (CVX), comunidade Virgem Oferente, Rio de Janeiro (RJ).

CVX: Uma Vocação

Imagem: Lígia de Medeiros

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

5 comentários Deixe um comentário

  1. Abrir o coração e estar atenta ao chamado de Deus na vida corrente. Obrigada por mostrar como Ele fala no cotidiano!

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  2. Quanta gentileza sua partilhar a experiência. Me lembro de participar de um retiro na Carpa e vc transformar aquele lugar com flores e símbolos. Gratidão.

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