Meu encontro com o místico Pedro Arrupe

Maria de Lourdes da Fonseca Freire Norberto

Em agosto de 2022, defendi, na PUC-Rio, minha tese de doutorado que teve como tema ’Homem para os outros’, a mística trinitária de Pedro Arrupe e seu impacto na renovação eclesial dos séculos XX e XXI.  Essa defesa é o resultado de uma caminhada de quase duas décadas que se iniciou numa busca de crescimento espiritual e no encontro com a espiritualidade inaciana através da CVX, o que me levou, anos mais tarde, à descoberta da importância da mística inaciana na minha vida.

Ainda como jovem aluna do Colégio Santo Inácio, em 1972, fui convidada por um professor a colaborar no Curso Supletivo onde tive meu primeiro contato com a pobreza e tomei consciência de que o mundo não era igual para todos.  Desde então comecei a questionar, ainda que de forma incipiente, o meu papel de cristã no mundo.  O tempo passou, a vida adulta aconteceu, mas a inquietude da juventude em relação à minha fé e ao compromisso com os que sofrem nunca me abandonou.

Em 2008, já perto da aposentadoria e com os três filhos crescidos, pude enfim procurar responder às questões que me acompanharam a vida toda. Para tanto, me inscrevi no curso de Teologia da Puc-Rio. Um pouco mais de um ano antes, havia conhecido a CVX e me juntado à comunidade Cristo Redentor, a qual ainda pertenço. Desde então a teologia e a espiritualidade inaciana se tornaram peças importantes no meu crescimento pessoal.

Em 2016, fui aceita na pós-graduação e tive a oportunidade de me aprofundar em duas questões importantes para mim: a busca por uma maturidade na minha fé e consequente amadurecimento do compromisso social na perspectiva inaciana que atrela de forma definitiva o serviço da fé à promoção da justiça (Congregação Geral 32 e subsequentes).

Na minha dissertação de mestrado, optei por pesquisar a evolução do conceito de missão dentro da Companhia de Jesus a partir do Concílio Vaticano II, tendo como base os decretos das seis últimas Congregações Gerais. Dediquei um capítulo do trabalho à questão dos refugiados, uma missão importante para a Companhia, que naquele momento atraia de forma especial o olhar de Francisco, eleito papa há pouco tempo.

Ao pesquisar essa missão específica, me deparei com a pessoa de Pe. Pedro Arrupe, Superior Geral dos Jesuítas de 1963 a 1983 e fundador da SJR (Serviço Jesuíta aos Refugiados), uma obra de mais de 40 anos de existência, mas ainda extremamente atual e necessária. Fui imediatamente impactada pela pessoa e mística desse jesuíta e, ainda escrevendo minha dissertação, soube que iria tentar o doutorado e que padre Arrupe seria o tema da minha nova pesquisa. E assim aconteceu.

Pedro Arrupe foi um místico da misericórdia e do compromisso com a humanidade, a quem coube viver em um período dramático da história pontuado por acontecimentos que abalaram o mundo, tais como a Segunda Grande Guerra e a Guerra Fria. Ele foi testemunha ocular da explosão da bomba atômica sobre Hiroshima, evento que marcou em definitivo seu ministério e fez crescer nele a certeza de que Deus impele cada ser humano a voltar o olhar para os pobres e os que sofrem e a desafiar as estruturas que geram pobreza e exclusão. Arrupe foi um homem de profunda oração, mas sua oração não visava unicamente estabelecer uma via de intimidade com Deus e sim criar uma via de intimidade que o levasse a encontrar Deus no mundo real e possibilitar que outros, principalmente os desalentados, também fizessem o mesmo encontro e descobrissem nele o verdadeiro sentido da vida. Enquanto esteve à frente da Companhia de Jesus, tentou fazer da luta pela fé compromissada com a justiça no mundo a característica definidora do seu ministério e da missão de cada jesuíta sobre sua liderança. Ele estava convencido que a luta pela justiça era central para quem queria nortear sua vida pelo Evangelho de Jesus Cristo.

Durante a minha pesquisa de doutorado, cheguei a muitos outros místicos contemporâneos, jesuítas ou não, que a partir de uma profunda experiência de Deus empenharam suas vidas pelos demais. Eram pessoas profundamente humanas que, mesmo em situações-limites de adversidade e morte, iluminaram as sombras gerada pela violência e se tornaram exemplo de fé para os que as cercavam. Essas pessoas, em sua maioria, eram desconhecidas do grande público e não necessariamente cristãs ou até mesmo religiosas, mas todas fizeram a experiência do inefável em suas vidas e testemunharam que a esperança é um bem mais forte do que a própria morte. 

O contato com Pedro Arrupe e sua mística tão inaciana e também com estes outros místicos pesquisados durante o doutorado iniciou em mim um processo de revisão de toda a minha espiritualidade e consequente crescimento pessoal.  Essa mística comprometida com a história me faz aguçar o olhar para tantas pessoas comuns que no cotidiano da vida, no trabalho, na família, nas relações sociais, deixam transparecer aos demais sua experiência pessoal de Deus e assim testemunham a Sua presença no mundo. Esses homens e mulheres são hoje sinal de esperança tanto para a Igreja que, como na época de padre Arrupe, vive tempos tumultuados como para o mundo que, mesmo sem saber, tem sede do divino, do transcendente, de algo que dê sentido ao viver e humanize a sociedade.  Seu exemplo me instiga também, através da oração e dos exercícios espirituais, a crescer em intimidade com Deus e me abrir cada vez mais para o sofrimento de tantos e me comprometer com sua dor.

Karl Rahnner já afirmava, na década de 60, que “o cristão do futuro ou será místico, uma pessoa que experimentou algo, ou não será cristão”. Acrescento a esse comentário, citando J. B. Metz, a necessidade imperiosa de que o cristão do futuro seja também um “místico de olhos abertos”, alguém que que experimentou a presença amorosa de Deus e percebeu que, diante desta presença e da consciência do sofrimento no mundo, não há mais nada a fazer senão levar sentido de vida e alento aos demais, especialmente aos que sofrem.

Penso que a mística inaciana tem muito a contribuir para a mística contemporânea como um todo, justamente por não se caracterizar por visões extraordinárias e sim por ser uma experiência de Deus que faz o místico enxergar a realidade de uma nova maneira. Essa capacidade de ver a realidade à luz de Deus e ser interpelado por Ele no sofrimento do mundo é uma das experiências fundantes em Santo Inácio.  

Como o jesuíta Ulpiano Vasques dizia, a mística inaciana pode ser resumida em duas frases: “Contemplativos na ação” e “Amar a Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus”.   Vejo aí um convite para que todos nós que estamos comprometidos com o seguimento de Jesus a partir da espiritualidade inaciana busquemos descobrir o místico encarnado que há em nós e assim, a partir de nossa ação, também deixar nossa colaboração na construção do Reino de Deus já aqui na história e no projeto de Jesus Cristo de que todos tenham vida e a tenham em abundância (Jo 10-10). E fecho meu testemunho, com está pequena oração de Pedro Arrupe, com a qual abro minha tese:

Mantenhamos intacto o princípio:
Quem se abre ao exterior, deve igualmente abrir-se ao interior,
isto é, a Cristo.
O que tem que ir mais longe para socorrer necessidades humanas, dialogue mais intimamente com Cristo.
O que tem que ser contemplativo na ação, procure na intensificação dessa ação a urgência para uma mais profunda contemplação.
Se queremos estar abertos ao mundo, devemos fazê-lo como Cristo
de tal maneira que o nosso testemunho brote como o seu,
da sua vida e da sua doutrina.
Não tenhamos medo de chegar a ser, como Ele, sinal de
contradição e escândalo… Além disso, nem ele sequer
foi compreendido por muitos…

 

Pedro Arrupe. En el solo la esperanza

Maria de Lourdes da Fonseca Freire Norberto é leiga, pertencente à Comunidade de Vida Cristã (CVX), comunidade Cristo Redentor, Rio de Janeiro (RJ).

CVX: Uma Vocação

Imagem: Servo de Deus Pedro Arrupe, SJ, na galeria de prepósitos gerais da Companhia de Jesus, Roma.

Comunidade de Vida Cristã (CVX) Espiritualidade cristã Leigas e leigos

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

2 comentários Deixe um comentário

  1. Seu relato me aquece o coração de gratidão a Santo Inácio e aos que seguem sua mística. Uma benção pertencer a essa família!
    Obrigada por compartilhar!

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  2. Uma pessoa disse que gostaria de ler mais sobre padre Pedro Arrupe. Lurdinha me disse que: Lamet fez uma biografia que foi atualizada mais recentemente. Mas, existe um livro excelente organizado por Ginne La Bella. Neste livro, vários autores se detém em temas ou momentos históricos da vida de Arrupe. O livro de La Bella tem um leitura mais leve e é muito completo. Tem um outro livro do La Bella sobre os jesuítas desde o Vaticano II que dedica um bom espaço a Pedro Arrupe.
    Nenhum tem tradução em português do Brasil, ainda. Referências:

    DIETSCH, J. C. Pedro Arrupe: itinerário de um jesuíta. Diálogos com Jean-Claude Dietsch, SJ. São Paulo: Loyola, 1985.

    GARCÍA, J. A. (seleção e adaptação). Rezar com o Padre Arrupe. Braga: Editorial A.O., 2007.

    GROGAN, B. Pedro Arrupe SJ: Mysthic with open eyes. Dublin: Messenger Publications, 2019.

    JESUIT REFUGEE SERVICE. In the footsteps of Pedro Arrupe: Ignatian spirituality lived in the service of refuggees. Rome: Jesuit Refugee Service, 2007.

    LA BELLA, G. Los Jesuitas: del Vaticano II al Papa Francisco. Bilbao: Mensajero, 2019.

    LA BELLA, G. Pedro Arrupe: General de la Compañía de Jesús (Nuevas aportaciones a sua biografía). Bilbao/Santander: Ediciones Mensajero/Editorial Sal e Terra, 2007.

    LAMET, P.M. Pedro Arrupe: Testemunha do século XX e profeta para o século XXI, Braga/Coimbra: Apostolado da Oração/Edições Tenacitas, 2003.

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