Os sinais de quem vem

Maria Clara Bingemer

Que ano duro e difícil para o povo brasileiro, esse 2022 que se aproxima do fim.  Quanta angústia, quanta dor, quanto medo vivido, quanta ansiedade reprimida. Após dois anos de uma pandemia que a todos confinou e tantas perdas dolorosas gerou, parecia que no início do ano anunciava-se uma trégua.  As vacinas existiam e estavam disponíveis, muitos as tomamos, sentíamo-nos protegidos.

Porém nesse momento a “outra” pandemia – ou seria a mais real de todas, a única que realmente existiu? – mostrou seu rosto sombrio.  E a política polarizada e enraivecida dividiu o país e o povo, rompendo relações e instaurando um clima ameaçador no cotidiano dos brasileiros.  A inflação, a subida dos preços, as dificuldades muitas de cada dia pareciam pequenas, menores, diante da terrível perspectiva de que poderíamos ser obrigados a viver mais alguns anos de opressão, impiedade e violência.  E talvez, com mais tempo pela frente, essa desolação maior se instalasse e permanecesse roubando-nos para sempre a alegria.

A eleição aconteceu e parecia que a vitória acontecida exorcizava os fantasmas.  No entanto, o que se vive agora, neste tempo posterior às urnas, continua a ser obscurecido e ameaçado por manifestações que bloqueiam estradas, impedem o direito de ir e vir, decretam que filhas não podem dar o último abraço à mãe que está morrendo em hospital distante; bloqueiam a ida de um jovem à rodoviária para tomar o ônibus que o levaria à cirurgia que lhe devolveria a visão.

Grupos revestidos com a bandeira brasileira se aglomeram diante de quartéis ou em plena rua, pedindo a intervenção militar em nome da democracia.  O nome de Deus é invocado a cada momento, seja ao lado de outras palavras de ordem como pátria e família, seja simbolizado em celulares postos no alto de cabeças na absurda intenção de comunicar-se com seres extraterrestres para que concedam a graça do estado de exceção em nome da liberdade.

Tudo isso leva a desejar mais ardentemente que venha o que se espera: a paz, a vida em abundância, a alegria.  E a buscar ansiosamente sinais desse estado de coisas, por mínimos que sejam. Porém, em meio a essa sagrada busca notícias de partidas abruptas de seres admirados e amados por todos, que ajudaram a dar ao Brasil sua identidade, trazem outra vez a dor:  Gal Costa, a baiana linda de cabelos negros e cacheados, boca vermelha e voz afinada cai fulminada por um infarto em sua casa.  Erasmo Carlos, o gigante gentil, o tremendão amado que embalou juventudes e brasileiros de todas as idades, é derrubado por uma doença já instalada em seu corpo e diz adeus.

Como viver o Advento nesse clima em que parece que nada vem e tudo se vai.  Vai-se o bem-estar, o sentir-se livre, as referências afetivas.  E o vazio parece instalar-se com ares sombrios de quem veio para ficar.  E, no entanto, uma vez mais, somos chamados a voltar-nos para a espera de quem vem.  De quem disse que vinha e fielmente vem a cada ano, porque na verdade já veio na história humana há mais de dois mil anos.  E vem a cada dia para todo homem e mulher que seja capaz de abertura ao mistério e esteja em busca do sentido maior da vida.

A poesia de mais um artista que graças a Deus se encontra vivo entre nós – Alceu Valença – nomeia a expectativa que insiste em habitar-nos, apesar de todos os percalços, as trevas e o medo.

Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais

Como podemos crer nisso?  Como, se tudo ao nosso redor parece desmentir a existência desses sinais e dessa vinda. Como se não enxergamos sinal algum?  E, no entanto, a voz do anjo sussurrou a uma jovem que ela seria mãe do Salvador.

A voz do anjo sussurrou no meu ouvido
Eu não duvido, já escuto os teus sinais

Na casa de uma jovem moça em Nazaré da Galileia, o mensageiro de Deus chegou dizendo notícias de começos e boas novas.  A voz do anjo sussurrou ao ouvido de Maria, noiva de José o carpinteiro.  E ela, embora perplexa, acreditou e se dispôs a ser a serva do Senhor e a tornar-se morada de Sua Palavra. Escutando os sinais que o anjo trouxe, seu corpo engravidou do mistério que anuncia que Deus não se esqueceu da humanidade e uma vez mais foi fiel a seu povo.

Por isso, hoje nosso povo está convidado a escutar esses sinais prenhes de esperança.  O anjo sussurra e convoca a estar atentos aos sinais da chegada de quem traz uma vez mais a todos o amor, a união e a paz. Escutar esses sinais é acreditar.

Que tu virias numa manhã de domingo.

Os sinais trazidos pelo mensageiro da alegria e pelo ventre grávido da jovem mãe nos convidam com firmeza e delicadeza a crer, acolher e anunciar sua vinda por cima dos telhados, no fundo dos poços, nos grotões da miséria, no aconchego das casas e nos sinos das catedrais.

Eu te anuncio nos sinos das catedrais.


Maria Clara Lucchetti Bingemer é teóloga, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro desde 1982. Autora de Crônicas de cá e de lá (Editora Subiaco), Teologia latino-americana:raízes e ramos (Editora Vozes), entre outros livros.

Imagem: Tarsila do Amaral (1886-1973) — Anjos, 1924. Enciclopédia Itaú Cultural.

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

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