O que nos deixa cegos?

Joana Eleuthério

Rezando a nossa condição de
pecadores e pecadoras…

Quem ama seu irmão permanece na luz e não se expõe a tropeçar. Mas quem odeia seu irmão está nas trevas e anda nas trevas, sem saber para onde dirige os passos; as trevas cegaram seus olhos.

1 Jo 2,10-11

Naquele tempo, aconteceu que
Jesus estava rezando num lugar retirado,
e os discípulos estavam com ele.
Então Jesus perguntou-lhes:
‘Quem diz o povo que eu sou?’
Eles responderam:
‘Uns dizem que és João Batista;
outros, que és Elias; mas outros acham
que és algum dos antigos profetas que ressuscitou.’
Mas Jesus perguntou:
‘E vós, quem dizeis que eu sou?’
Pedro respondeu: ‘O Cristo de Deus.’
Mas Jesus proibiu-lhes severamente
que contassem isso a alguém.

Lucas 9,18-22

Sempre que algum assunto da minha oração diária acende a luzinha em meu coração e provoca comichão em meus dedos, eles começam a ter saudades do teclado em uma espécie de frenesi. Isso me faz ficar mais atenta ao entorno: mental, espiritual, bíblico e do dia-a-dia da minha vida. Assim foi com esse texto de Lucas e a presença forte da primeira carta de João nesse mês da Bíblia, que ainda ressoa em mim.

“Para compreendermos de forma sensata e libertadora a Primeira Carta de João às comunidades joaninas, melhor dizendo, Carta de João às Comunidades do Discípulo Amado e especificamente compreendermos a parte de 1Jo 2,29–4,6, que propõe às pessoas e às comunidades cristãs que, ‘para ser filha e filho de Deus, temos que ser pessoas justas’, é preciso várias coisas. Primeiro, ler, reler e tresler o texto devagarinho, de preferência de forma comunitária. (Gilvander Moreira, frei e padre da Ordem dos Carmelitas.)

Gostei do conselho do frei carmelita e, a princípio, comecei uma leitura orante sem grandes pretensões, mas depois, diante da riqueza desta carta, eu me detive alguns dias lendo, relendo e treslendo. Infelizmente de forma solitária. E ainda há muita coisa importante para buscar, encontrar, compreender e rezar nesta carta, que nos dá uma boa visão da realidade das Comunidades do Discípulo Amado, da utopia do reino de Deus testemunhado por Jesus Cristo, que João Evangelista e suas comunidade buscavam colocar em prática como um projeto de vida que se pautava por quatro aspectos entrelaçados: amor, justiça, solidariedade e fraternidade. E é isso que também o frei Gilvander nos diz em seu texto, além de enfatizar que, no contexto perigoso que vivemos, a leitura e a boa compreensão da Primeira Carta de João nos permitirá perceber e refletir sobre um dos graves obstáculos que as comunidades cristãs do discípulo amado tiveram de enfrentar por causa das investidas de grupos espiritualistas que estavam desencarnando a fé cristã e amputando a dimensão social da fé em/de Jesus Cristo e no seu Evangelho. Um aspecto muito triste e lamentável, que hoje também estamos enfrentando em nossa vida aqui no Brasil, quiçá no mundo.

Assim, destaco alguns pontos que me tocaram de forma particular na carinhosa carta que João – o discípulo amado – escreveu para as suas comunidades, preocupado como deveria estar, em oferecer uma formação e uma evangelização de excelência todo aquele grupo.

« Filhinhos, ninguém vos seduza: aquele que pratica a justiça é justo, como também (Jesus) é justo. Aquele que peca é do demônio, porque o demônio peca desde o princípio. Eis por que o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do demônio. […] Pois esta é a mensagem que tendes ouvido desde o princípio: que nos amemos uns aos outros. Não façamos como Caim, que era do Maligno e matou seu irmão. E por que o matou? Porque as suas obras eram más, e as do seu irmão, justas. […] Eis o seu mandamento: que creiamos no nome do seu Filho Jesus Cristo e nos amemos uns aos outros, como ele nos mandou (e nos amou). »

1Jo 4, 7-8; 12; 23

« Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor. Nisto se manifestou o amor de Deus para conosco: em nos ter enviado ao mundo o seu Filho único, para que vivamos por ele. Caríssimos, se Deus assim nos amou, também nós nos devemos amar uns aos outros. […] Temos de Deus este mandamento: o que amar a Deus, ame também a seu irmão. »  

1Jo 4, 7-9; 11; 21

Filhinhos, guardai-vos dos ídolos!
1Jo 5, 21

Fazendo a leitura orante da Primeira Carta de João, o discípulo amado, veio-me também, como uma cena de filme, a seguinte narração:

Algum tempo depois da morte de João Batista, “o rei Herodes ouviu falar de Jesus, cujo nome se tornara muito conhecido. Em toda aquela região, ouvia-se dizer: ‘João Batista ressurgiu dos mortos e por isso o poder de fazer milagres opera nele’, ou ‘É Elias!’, ou ainda: ‘É um profeta como qualquer outro’. Em meio a essas diferentes interpretações, Herodes repetia para si mesmo: ‘É João, a quem mandei decapitar. Ele ressuscitou!’. Como se sabe, foi o próprio Herodes quem mandou prender João e acorrentá-lo no cárcere, por causa de Herodíades, mulher de seu irmão Filipe, com a qual o tetrarca se juntou. João Batista admoestava-o dizendo: ‘Não lhe é permitido tomar a mulher de seu irmão com sua esposa!’. Por isso, Herodíades odiava João Batista e queria vê-lo morto. Mas Herodes tinha algum respeito por João, reconhecia tratar-se de um homem justo e santo e até o protegia. Quando tinha oportunidade de ouvi-lo, fazia-o de boa vontade, embora se sentisse embaraçado. Contudo, no aniversário de Herodes, quando ele deu um banquete aos grandes de sua corte, aos seus oficiais e aos principais da Galileia, a filha de Herodíades apresentou-se e pôs-se a dançar, proporcionando grande satisfação a Herodes e a todos os convivas. Herodes então disse à moça: ‘Pede-me o que quiser, e eu darei a você, ainda que seja a metade do meu reino’.  A moça foi perguntar para a mãe: ‘Que hei de pedir?’. A mãe respondeu sem titubear: ‘A cabeça de João Batista.’ A enteada então disse ao rei: ‘Quero que me dê agora a cabeça de João Batista’. Herodes entristeceu-se, mas não viu como fugir da promessa feita diante de tantos convivas que haviam testemunhado tudo. Ele então chamou os guardas, que buscaram um carrasco, diante da ordem de trazer a cabeça de João Batista. Assim, o primo de Jesus foi decapitado no cárcere e trouxeram a cabeça dele em uma bandeja, que foi entregue à moça, que a entregou à sua mãe. A notícia correu, os discípulos de João vieram buscar o seu corpo para colocarem em um sepulcro.” (Mc 6,14-29)

Herodes, me pareceu um homem poderoso, mas extremamente frágil. Talvez fosse um homem bom, que se deixou vencer pelos falsos ídolos, como o poder e o medo de perdê-lo. Marcos nos diz que ele ouvia João Batista com respeito e sentia-se embaraçado. Lucas comenta que Herodes dizia: ‘Eu mandei degolar João. Quem é esse homem, sobre quem ouço falar essas coisas? Eu gostaria muito de ver e conhecer Jesus.’ Contudo, no ambiente em que Herodes vivia e pelo medo de perder honrarias junto ao Império Romano, possivelmente, nem se atrevesse a comentar isso com alguém. A fraqueza do poderoso rei permitiu que ele fosse totalmente seduzido por Herodíades e pelo apego ao poder e à glória terrenos. A luz que vem do alto apagou-se diante dele, que só via diante de si o falso brilho de dos tesouros terrenos. Todo poderoso – ele se sentia muito só.

Em 1Jo 1,1-2,28, vemos que as pessoas das Comunidades do Discípulo Amado buscavam andar na luz, porque ‘Deus é luz’ (1 Jo 1,5). Sim, Deus é luz, mas não é só luz; Deus é também justiça. Por isso, na parte de 1 Jo 2,29-4,6 vemos que andar na luz implica viver na justiça. (Gilvander Moreira, no mesmo texto citado acima)

Peçamos a graça de não nos deixar cegar pelo brilho das falsas pérolas. Que tenhamos coragem de abrir mão de tudo para alcançar o verdadeiro tesouro do seguimento de Jesus, da sua boa nova e do imenso e misericordioso amor Trinitário da nossa família divina – Deus é luz, Deus é amor. Valorizando a vida em comunidade, sejamos presenças diferenciadas onde estivermos – vivamos o amor, a justiça, a humildade, a liberdade, a solidariedade e a fraternidade, aprendidas e discernidas em nossa caminhada de filhas e filhos de Deus, ao lado de Jesus Cristo. Amém.

Brasília (DF), 1 de outubro de 2019.


Imagem: San Juan Evangelista. El Greco, séc. XVII. © Museo Nacional del Prado

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Caminhante sem nenhuma linearidade e com variados interesses – uma buscadora incansável.

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