A irreverência de Santa Teresa
Ligia de Medeiros *
Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada, a Santa Teresa de Ávila, era conhecida por ser uma pessoa equilibrada, dona de uma perfeita saúde mental, avessa a repressões e complexos, dando ao natural o espaço que ele deve ocupar.
Seu irmão, dom Lourenço, o índio, fez fortuna nas Índias Ocidentais (ajudou a conquistar o atual Equador) e, que, depois de viver no fausto, servido por escravos, voltou mal acostumado à sua terra natal; Teresa virou sua mestra, confidente e consultora para os assuntos temporais e espirituais.
Apesar de Lourenço ser um homem encantador (atributo de família), opulento e já maduro, dependia como um menino de Teresa. E ela salvou-o de várias situações com relação à administração da fortuna, pois tinha tendências ao esbanjamento; com relação à educação dos filhos, aconselhou-o que fossem estudar em colégio jesuíta; na salvação da sua alma, indicou-lhe leituras. E até mesmo para alugar uma casa precisou aconselhá-lo, pois o conquistador das Índias Ocidentais era capaz de ser enganado por um finório qualquer.
Teresa era uma representante da velha Espanha, e Lourenço, da nova: a do ultramar, do dinheiro fácil, do esbanjamento e da ociosidade. Se os conquistadores espanhóis tivessem tido uma irmã como Teresa, o ouro que saiu das Índias para a Espanha teria sido mais bem aplicado, pois parece que esse ouro, administrado por pessoas como Lourenço de Cepeda, serviu mais para empobrecer aquele país.
Lourenço aconselhou-se com Teresa sobre uma fazenda que tinha adquirido perto de Ávila. Lamentava o trabalho que ela dava e, pensava que se tivesse aplicado o dinheiro, poderia usar melhor o tempo para a oração. Teresa rebateu:
Quando queremos fugir do trabalho,
tudo nos cansa.
Teresa viu que o irmão, acostumado a ser servido, tinha perdido a honra das antigas famílias castelhanas que não fugiam no cumprimento dos seus deveres de proprietários rurais. Deu-lhe a ler o Caminho da perfeição especialmente o capítulo XXX, que convida a abandonar-se à vontade do Senhor. E Teresa resumiu essa vontade: A de que trabalhasse, pois quem quer comer, tem que trabalhar!
Teresa se queixa ao irmão dos arroubamentos que vêm a público nas horas mais impróprias. Ele também lhe faz confidências sobre as graças recebidas, e Teresa lhe diz para ter cautela, que tudo é mais do que se pode entender, e princípio de muito bem. Ela rememorava os seus primeiros êxtases, que foram tão deleitosos e que a fez traduzir esses sentimentos no verso:
Sem ferir, que dor fazeis!
E quão sem dor desfazeis
o amor pelas criaturas!
Sobre um assunto delicado que Lourenço levanta — as repercussões físicas do amor místico — Teresa lida com sublime indiferença, e recomenda que ele não faça caso dos transtornos que se seguem. Esclarece que o deleite da alma é tão grande que repercute no nosso natural, mas que eles vão desaparecendo, desde que não lhes dê importância. Ela recomenda que a alma resista; mas que é natural que ela se assuste com os estremecimentos, com os calores; mas nada disso significa que, por aí, se tenha uma oração mais alta.
A nossa santa é espirituosa, pois faz chiste com o irmão, que lhe manda presentes, dinheiro e doces e ela, em troca, ela lhe devolve cilícios.
Tirou da cabeça de Lourenço a ideia de ser merecedor do inferno, de fazer voto de perfeição sem consultá-la, de querer ser frade, de abusar do uso do cilício. Acalmou-o também nos impulsos de fervor que o faziam levanta-se de madrugada para orar.
Um conterrâneo, nobre, que se queixava de relaxamento das orações durante o período de suas viagens, recomendou-lhe que, quando voltasse para casa e entrasse no seu sossego, a alma recuperaria o seu. Aconselhava a levar a nossas fraquezas com arte, a alma com suavidade, para não oprimir a natureza. Avisava a quem estava sob os seus cuidados, a buscar o que pudesse acolher e suportar, pois era importante que ninguém se perdesse na busca da vida de perfeição.
Para outro alguém que perdeu quase toda a sua fortuna na ocasião de um processo, lamentou que essa pessoa não estivesse totalmente desprendida das coisas materiais, a ponto de não saber enfrentar a provação que o Senhor permitiu que ele passasse. E, que se fosse com ela, pouco se importaria. E sabiamente dizia: “Como nunca nos conhecemos, é melhor fugir de tudo pelo Tudo, para que o nosso natural não nos faça escravos de coisas tão baixas”.
Entendia que mesmo o mais forte dos homens precisa voltar a ser criança e agir com bom humor, mesmo nas coisas de Deus.
Lourenço pediu temas de meditação, e Teresa enviou-lhe uma frase que dizia “Procura-me em ti”. Lourenço envolveu São João da Cruz para que o ajudasse na resposta. Quando vieram as respostas, Teresa espalhou as suas graciosas alfinetadas em todos eles. Em tom de troça, disse que teria que denunciar o santo à Inquisição, pois, depois dele dizer em carta que suas observações vinham do Espírito Santo e de São Paulo, pedia desculpas pelas tolices que escreveu. “Que não demore a retificação!”, brinca Teresa. Também o criticou porque ele se deixou arrebatar até às alturas e, escapando do tema, elevou-se mil léguas acima dele. Termina por agradecer ao santo que se fez entender tão bem no que não foi perguntado. Pede para Deus livrá-la de gente tão espiritual que quer converter tudo em contemplação perfeita, pois, no que nos diz respeito, não será só quando estivermos mortos para o mundo que encontraremos a Deus. Já, a Lourenço, disse que se divertiu com as suas respostas e, sendo assim, perdoava-lhe por dizer mais do que podia compreender, além da pouca humildade com que se meteu em coisas tão elevadas. E termina a carta com uma saudação: “Que Deus o guarde e faça de Vossa Mercê um santo!”. D. Lourenço ficou magoado e foi queixar-se com ela. Teresa consolou-o, mas, sem mentir, confirmou tudo o que disse, mas acalmou o seu amor próprio, culpando o purgativo que tomara na véspera pelas suas palavras…
Baseado no livro
Teresa de Ávila, de Marcelle Auclair. Editora Quadrante, 2015.
— Agosto 2018
* Lígia de Medeiros é artista, designer, educadora e carioca.
Para saber mais sobre Santa Teresa de Jesus
- V centenário do nascimento de Teresa de Ávila — Papa Francisco (2014)
- Santa Teresa de Ávila [de Jesus] — Bento XVI (2011)
- IV centenário da morte de Santa Teresa de Jesus — João Paulo II (1982)
- Proclamação de Santa Teresa de Jesus a Doutora da Igreja — Paulo VI (1970)
- Teresa d’Ávila: a santa que queria dar um xeque-mate no Senhor — Julia Kristeva (IHU on-line)
- Teresa d’Ávila, a modernidade de uma mística — entrevista com Julia Kristeva (IHU on-line)
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Ligia, irreverente como TEREZA
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Lígia parabéns, preciosa primeira contribuição feminina
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Admirável Santa Teresa de Ávila!!
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Gostei muito do seu texto Lígia. Deixou um gostinho de quero mais … tanto de Teresa, como de Lígia de Medeiros.
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Obrigada, Joana! Me baseei no livro sobre sta. Teresa, aquele que trabalhamos na Marta. Um beijo querida!
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Já li dois dos textos indicados abaixo do seu texto, mas sou apaixonada pela Hidelgarda de Bingen também.
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