Amando-nos, ensinou-nos a amar

Hoje vi o Lago Paranoá, e ele estava calmo. Como dizia meu querido pai, quando o Lago está “lisinho”, torna-se perfeito para remar. E não seria mais natural lhes comunicar que ele foi remar. Dessa vez uma remada especial. Dessa vez, não por esse corpo d’água, e sim pelo corpo do incognoscível, do silêncio, da brisa suave… daquilo que podemos denominar Deus.

Aos cinquenta e três anos de idade, longos foram esses últimos cinquenta e três dias que ele sobreviveu neste mundo. Em seu silêncio emissor de uma atmosfera sublime, lutou e resistiu ao máximo à dor, ao sofrimento, às intervenções e à hostilidade de um ambiente do qual nunca foi um grande fã. E não, essa resistência não foi em vão. Tão sábio e amoroso que é, permitiu que, ao longo desses dias, o duro preparo para este momento acontecesse. Não apenas isso, que fosse edificada e consolidada uma fortaleza de luz e de orações responsável por envolvê-lo e protegê-lo nesse caminho.

Devo confessar que hoje é difícil compreender, sequer uma migalha, da razão de sua partida aparentemente precoce. Juro que, se me perguntam quem é o ser humano de meu convívio que mais me lembra do modo de vida ensinado por Jesus, digo que esse ser é meu pai.

E assim é como temos que lembrá-lo e levá-lo em nossos corações: uma pessoa alegre, intensa, generosa, leve, resiliente em suas convicções, sensível e, sobretudo, abundante em amor.
Aquele que descia do carro para conversar com o frentista, que olhava nos olhos de moradores de rua e os ajudava após ouvir pacientemente suas histórias, que não se omitia diante de injustiças ou ofensas e não tinha medo de expressar sua opinião, que parecia ter dinheiro infinito de tanta generosidade, que não negava colo. Muito menos sorvete. Que nos perdoava imediatamente, que preparava silenciosamente o pão do lanche da escola dos filhos na noite anterior ou ia cedinho à padaria no dia seguinte para nos prover essa refeição, que levantava durante reuniões de trabalho on-line para abrir a porta para a Pérola, que nos mostrava o que é ter paixão, que mantinha a criança interior viva e sorrindo, que não ligava para o que os outros pensavam, que acreditava na “teocidência”, que sabia aproveitar a vida, que era dotado de uma lógica única, que me ensinou a ouvir música boa, que me levou a São Paulo aos cinco anos para realizar meu sonho de ver o Paul McCartney, que nos ensinou que sempre podemos melhorar. Que me ensinou a dizer não, que me ensinou a dizer sim, que me ensinou a valorizar o exercício físico e a saúde, que não admitia choques entre mim e meu irmão e diariamente me faz um primogênito melhor ao caçula, que ensinava crianças a rezar, que nos ensinava a rezar e a ter fé de que tudo dará certo.
Aquele que, amando-nos, ensinou-nos a amar.

Grato sou por tudo isso. E também por todos seus feitos invisíveis que cravejaram amor em minha essência sem nem perceber. Um desses me foi revelado recentemente, quando meu pai contou que me aninava no colo até o limite físico de dor latejante em braços e costas, durante minha fase de recém-nascido. Como não bastasse, instituiu um regime cesarista de análise diária de minha amamentação que — pasmem — avaliava frequência, lado e tempo de mamada. Tudo isso para ficar seguro de que a nutrição do amado filho estava adequada. Fico contente de ter tido a oportunidade de lhe falar há poucos meses que sempre me senti amado por ele ao longo de toda minha vida e que nunca tive dúvida sobre isso. Hoje diria até que gostava de suas broncas e de suas manias ímpares.

Agradeço-lhes profundamente toda a energia e todo o tempo investidos em meu pai e nessa fortaleza com a qual hoje somos presenteados como uma grande herança dessa áspera situação. Tenho certeza de que meu pai agora habita com nosso Pai, e isso para mim já basta. Por aqui seguiremos com muita força e com o pensamento de que tudo isso tem um propósito muito maior em nossas vidas e em Seu plano.
Cinquenta e três dias aos cinquenta e três anos. Mera coincidência, não. Vera “teocidência”.

Como profetizou a música que chamávamos de nossa:

Num dia de tristeza me faltou o velho, e falta lhe confesso que ainda hoje faz. (…) Ai, mas que saudade. Mas eu sei que lá no céu o velho tem vaidade e orgulho de seu filho ser igual seu pai.

Com amor e o coração apertado,
João.


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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

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