O Evangelho aberto: sinal da vida e dos ensinamentos de Francisco
Pe. Miguel Martins sj
A imagem do Evangelho aberto, repousando sobre o caixão de Papa Francisco durante a cerimônia de seu sepultamento, tornou-se um ícone eloquente da sua vida, missão e legado.
Mais do que um símbolo litúrgico, essa imagem concentra e expressa a essência de seu pontificado: um homem profundamente configurado ao Evangelho de Cristo, que viveu, ensinou e sonhou uma Igreja em saída, sinodal e misericordiosa. A partir desta poderosa cena final, podemos revisitar alguns dos principais gestos e ensinamentos de Francisco, especialmente aqueles que marcaram sua trajetória desde a publicação da Evangelii Gaudium (2013) até a encíclica Dilexit nos (2024).
O Evangelho como centro: a alegria do anúncio
A exortação apostólica Evangelii Gaudium inaugurou o magistério programático de Francisco, propondo a alegria do Evangelho como coração da vida cristã e eixo da renovação eclesial. Desde o início, o Papa sonhou com uma Igreja que, em vez de se fechar em estruturas autorreferenciais, se lançasse às periferias existenciais para anunciar a Boa-Nova. O Evangelho, para ele, não era apenas uma mensagem a ser proclamada, mas uma realidade viva a ser encarnada no modo de ser Igreja e de estar no mundo.
Neste sentido, a presença do Evangelho aberto sobre seu caixão não é apenas um gesto litúrgico, mas a metáfora final de sua existência: Francisco foi um “Evangelho vivo”, aberto ao mundo, ao pobre, ao pecador, ao diferente. Como escreveu na Evangelii Gaudium: “O bem tende sempre a comunicar-se. Toda experiência autêntica de verdade e de beleza procura por si mesma a sua expansão” (EG, n. 9).
Gestos que falaram mais alto que palavras
Ao longo de seu pontificado, Francisco nos ensinou que o Evangelho é mais do que uma doutrina; é vida, é encontro, é misericórdia. Desde os primeiros gestos — como pagar pessoalmente a conta do hotel onde se hospedara durante o conclave, recusar aposentos luxuosos e preferir a residência de Santa Marta —, Francisco imprimiu ao seu ministério um estilo evangélico de simplicidade, humildade e proximidade.
Sua escolha insistente pelos gestos — beijar os pés dos prisioneiros, abraçar os doentes, visitar campos de refugiados, lavar os pés de mulheres e muçulmanos na Quinta-Feira Santa — traduzia em atos o Evangelho que pregava. Francisco parecia repetir com sua vida o que recomendava na Gaudete et Exsultate: “A santidade é o rosto mais belo da Igreja” (GE, n. 9).
A sinodalidade como caminho evangélico
Outro traço marcante do seu magistério foi a insistência na sinodalidade. Desde o Sínodo sobre a Família até o processo do Sínodo sobre a sinodalidade (2021-2024), Francisco buscou realizar uma Igreja onde todos fossem sujeitos ativos e corresponsáveis pela missão. Como afirmou no discurso do 50º aniversário da instituição do Sínodo dos Bispos, “o caminho da sinodalidade é o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio”.
A sinodalidade, para Francisco, não é uma questão meramente organizativa, mas profundamente evangélica: é o modo de ser Igreja que mais corresponde ao Evangelho aberto, que não impõe fardos, mas escuta, caminha junto, discernindo à luz do Espírito Santo.
Neste sentido, rezamos e esperamos que as autoridades da Igreja assumam com seriedade e responsabilidade a implementação das orientações do Sínodo, consignadas no Documento Final, assumido por Francisco como parte do “Magistério ordinário do sucessor de Pedro e, como tal, peço que seja acolhido” (cf. Nota de acompanhamento do papa Francisco ao Documento Final, 24 de novembro de 2024).
Misericórdia e esperança: o fio condutor
Se uma palavra pode sintetizar o magistério de Francisco, essa palavra é “misericórdia”. A Misericordiae Vultus (2015) – bula de convocação do Jubileu da Misericórdia – definiu a misericórdia como “o próprio ser de Deus” e o horizonte primeiro da missão da Igreja. Mais do que nunca, em tempos de indiferença globalizada e cultura do descarte, Francisco pediu que a Igreja se tornasse “hospital de campanha”, onde antes de julgar, se acolhe; antes de condenar, se cura.
Essa perspectiva se prolonga até sua última encíclica, Dilexit nos (2024), em que medita sobre o amor de Deus que nos amou primeiro (1Jo 4,19) e convida a humanidade a confiar na força transformadora do amor. Aqui, o Evangelho aberto sobre seu caixão ressoa como um testamento: amar como Cristo nos amou, sem medidas nem fronteiras.
Evangelho continua aberto
O Evangelho aberto, exposto silenciosamente no sepultamento de Francisco, fala de uma vida que se manteve sempre à escuta da Palavra e em movimento para anunciá-la. Seu magistério e seus gestos permanecerão como um convite permanente a viver a fé de maneira encarnada, alegre, misericordiosa e sinodal.
Francisco não quis deixar um monumento a si mesmo, mas abrir caminhos. Seu legado é, ao mesmo tempo, exigente e luminoso: uma Igreja que caminha com os homens e mulheres do seu tempo, carregando nas mãos o Evangelho aberto da esperança.
Em tempos de fechamento e medo, Francisco nos deixou uma última imagem profética: a Palavra aberta sobre a história, sobre o mundo, sobre a Igreja – aberta, como horizonte inspirador para a comunidade dos seus discípulos e discípulas e para toda a humanidade. Todos! Todos! Todos!
Pe. Miguel Martins é padre jesuíta, diretor do Centro Cultural de Brasília.
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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.
