Escuta interior do Espírito Auxiliador
João Melo
É possível restaurar as instituições com a santidade, e não restaurar a santidade com as instituições.
São Filipe Néri
Quando abrimos o nosso coração para a chegada Daquele que nos auxilia na vida e na verdade (Jo 15,26), superamos as ideias enrijecidas e o medo de se perder do essencial da fé, e de desagradar a Deus e a Igreja. Isso se dá porque passamos a conhecer internamente e pela experiência que aquilo que o Espírito Auxiliador nos comunica intimamente vem de Deus Pai (Jo 15,26).
O critério para não cair em confusão é a familiaridade do que sentimos internamente com o surpreendente modo de proceder de Jesus e seu projeto de vida, o Reino de Deus.
Quando escutamos o Espírito, descobrimos que sua voz ressoa em nosso coração de uma forma já conhecida e totalmente nova. Já conhecida porque Ele nos fala do mesmo modo que Cristo fala, “desde o começo” (Jo 15,27). Totalmente nova porque nos convida a romper barreiras e mudar de vida, mesmo que existam forças contrárias arraigadas no fechamento e surdas ao sopro novo que brota na vida do povo onde Ele habita.
Escutar e deixar-se guiar pelo Espírito Santo requer o desejo de ouvir atentamente a voz divina que ecoa no mais profundo de nosso interior. É preciso mergulhar mais fundo para driblar os meros conjuntos de ideias atraentes, é preciso cavar mais fundo para superar os envelhecidos tradicionalismos sedutores, é preciso avançar para águas mais profundas (Lc 5,4) a fim de abandonar certas doutrinas religiosas, posturas políticas e convicções pessoais em que nos apegamos internamente na ilusão de que nos fornecem alguma segurança (Francisco, Evangelii Gaudium, n. 49). Escutar e deixar-se guiar pelo Espírito nos liberta para viver a experiência de um autêntico encontro pessoal com o amor incondicional de Deus que se revela no rosto misericordioso de Jesus Cristo.
Podemos até concordar e assentir racionalmente que Deus nos ama, porém, isso não significa que vamos agir em resposta generosa a esse amor primeiro. Muitas vezes, isso se dá porque esse conhecimento é mais racional do que interno e experiencial. É quando essa experiência, ainda em um processo de crescimento afetivo e espiritual, não atingiu uma radicalidade de princípio e fundamento que pode vir a ter em nossa vida.
Na verdade, quando nossos apegos aos pressupostos que nos amarram se colocam no meio para interpolar, ora reduzindo, ora absolutizando toda possiblidade de relação com Deus, eles obstaculizam a nossa experiência amorosa e libertadora. Dito de outra maneira, um saber que Deus nos ama mais intelectualizado do que afetivo desencadeia um agir conforme os velhos costumes, acomodando-nos.
Assim, por exemplo, quando a nossa experiência religiosa não está a favor da vida espiritual, ela deixou de ser uma autêntica experiência de religare (religar-se [com Deus]), para tornar-se um aparato ritualístico e doutrinal desconexo da verdade que o Espírito nos auxilia a descobrir e sentir na intimidade da nossa vida espiritual. Nesse momento, somos chamados a uma reforma de vida para renovar nosso caminho espiritual, para que o Espírito nos conduza verdadeiramente a uma experiência de vida em abundância, tão sonhada por Jesus (Jo 10,10).
Quem tem sua vida espiritual enraizada na relação pessoal com Deus e na escuta do Espírito Auxiliador não substituí, suprime ou condiciona sua vida espiritual e seu modo de estar no mundo, por um vínculo a um conjunto de ideias que lhe trazem uma falsa segurança, mas está aberto ao que Santo Inácio de Loyola convidava: “deixe o Criador agir diretamente com a criatura, e a criatura com seu Criador e Senhor” (Exercícios Espirituais, n.15).
Na experiência concreta de tantas pessoas LGBTs, essa dinâmica se manifesta quando, mesmo sentindo-se profundamente amadas por Deus em sua identidade mais autêntica, permitem que interpretações secundárias as afastem da vida eclesial plena e dos sacramentos. São pessoas que, criadas à imagem e semelhança de Deus, trazem em si a beleza da diversidade presente na própria Criação. No entanto, frequentemente se veem divididas entre a voz do Espírito que as confirma em seu valor fundamental e as estruturas que as convidam a negar aspectos essenciais de quem são, ou a se excluírem do convívio comunitário e/ou sacramental.
O Espírito Auxiliador, que sopra onde quer (Jo 3,8), continua hoje a nos convidar para uma compreensão mais profunda do amor incondicional de Deus. Ele nos chama a reconhecer que a diversidade humana – em todas as suas expressões de gênero, afeto e identidade – não é um erro a ser corrigido, mas um reflexo da criatividade divina a ser celebrado. Quando permitimos que esse sopro do Espírito guie nossa vida espiritual, descobrimos que nossa participação na vida e missão da Igreja não depende de negarmos quem somos, nem de nos excluirmos da vida comunitária e sacramental, mas de nos sentarmos à mesa em comunhão com os irmãos e irmãs, e oferecermos genuinamente quem somos ao serviço do Reino.
No fundo, toda e qualquer pessoa espiritual é chamada a perguntar a si mesma: Vivo e ajo segundo o que o Espírito sopra em meu coração ou vivo segundo interpretações secundárias que em troca de minha submissão me recompensam com uma falsa proteção e pertencimento a uma estrutura de poder? Onde está depositada a minha confiança? No poder das convicções estabelecidas ou na brisa do Espírito que me convida a desapegar-me de mim mesmo? Onde quer estar o meu coração?
João Melo é professor, escritor e paulistano. Descendente de retirantes da seca de 1915, no Ceará e Piauí; e de apanhadoras de flores sempre-vivas da Serra Negra, em Itamarandiba (MG). É licenciado em Filosofia, bacharel em Teologia, mestrando em Educação na UERJ. Tem livros e artigos publicados em periódicos, revistas e portais digitais. Atualmente, vive no Rio de Janeiro.
Imagem: Lígia de Medeiros. Azulejo Brasília, lugar onde o vento sopra pra onde quer.
Espiritualidade cristã João Melo LGBTQIA+ amor incondicional de Deus Discernimento diversidade na Igreja encontro pessoal com Deus escuta espiritual Espírito Santo Evangelii Gaudium Exercícios Espirituais experiência de fé identidade e fé inclusão LGBTI+ liberdade espiritual reforma de vida Reino de Deus relações humanas e espiritualidade religiosidade autêntica Sacramentos Santo Inácio de Loyola Sinodalidade Teologia da Libertação tradição e renovação vida eclesial Vida espiritual
João Melo Visualizar tudo →
Descendentes dos retirantes que enfrentaram a seca de 1915 (PI/CE) e das apanhadoras de flores sempre-vivas ao pé da Serra Negra em Itamarandiba (MG). Paulistano que vive no Rio de Janeiro. Autor de “Entre Eva e Mapana” (Editora Pluralidades, 2023) e de livros da série “Ensaios Teológicos Indecentes” (Editora Metanoia, 2024).
