Fraternidade e ecologia integral
Pe. Adroaldo Palaoro, SJ
Queremos “fazer memória” de três eventos eclesiais importantes:
- “Tempo da Criação” (setembro/2024), com o tema “Esperançar e agir com a Criação”;
- a convocação do Jubileu Ordinário/2025 com o tema: “Peregrinos de esperança”;
- Campanha da Fraternidade no Brasil (2025), com o tema – “Fraternidade e Ecologia integral” e o lema: “E Deus viu que tudo era muito bom”.
Tais eventos pretendem despertar uma sensibilidade para deixar ressoar em nossas profundezas os gritos que procedem tanto da Humanidade ferida quanto da Criação inteira, explorada, destruída, contaminada…
Todos nós somos responsáveis pelas causas da crise ecológica na qual nos encontramos. É preciso reconhecer que nosso modo de vida afeta à saúde do planeta Terra, com terríveis consequências.
Ao mesmo tempo, precisamos nos distanciar da tentação do desânimo frente a uma batalha que muitas vezes parece perdida, pois nos sentimos muito pequenos e limitados diante da magnitude do desafio. Somos chamados a nos levantar diante dos fracassos e das perdas e manter uma atitude de esperança.
A esperança, talvez mais do que toda outra virtude ou disposição, está bem no cerne do ser humano e de sua existência, fazendo-o viver e dando sentido à aventura de sua existência. Basta pensar no que é o desespero, a ausência de horizonte, a falta ou a perda de todo projeto possível, para compreender que a esperança emerge das profundezas do ser humano. Sem esperança, ele não pode viver.
O ser humano é ser “esperante”.
A esperança carrega uma força misteriosa, um sopro criador, um alento espiritual que nos leva a olhar tudo com fé e encantamento; é um princípio vital, expresso na sábia e verdadeira constatação de que “enquanto houver vida, há esperança”. Mesmo diante da estrema violência nas relações humanas e da trágica destruição da natureza, vislumbramos possibilidades de saída, achamos possível ser e viver de outro modo, inventamos e reinventamos alternativas, recusamos a possibilidade da “cultura da indiferença” nos dominar e, sem cessar, sonhamos com o mais e o melhor.
A esperança é gestora do futuro e rompedora da dureza do existir.
Com a Bula “Spes non confundit” (“a esperança não decepciona” – Rom 5,5), o Papa Francisco proclamou o Jubileu ordinário do ano 2025. Com o tema “Peregrinos de esperança”, a intenção do Papa é reacender a esperança em todo o povo cristão, tendo presente o contexto social e religioso marcado pela “desesperança”, carência de projetos e de sonhos, falta de sentido…
Que é o Jubileu da esperança? O texto bíblico do Levítico 25 nos ajuda a compreender o que significa “jubileu” para o povo de Israel. A cada 50 anos os hebreus ouviam o alegre som do “jobel” (corneta de chifre de carneiro) que ecoava nas montanhas e nos vales, convocando a todos (“jobil”) para celebrar um ano jubilar. Neste tempo devia-se recuperar a boa relação com Deus, com o próximo e com toda a Criação, fundada na gratuidade. Era um ano do perdão, ou seja, os pobres ficavam livres de suas dívidas, os escravos tornavam-se livres, os camponeses recuperavam suas terras… Cheios de júbilo, podiam respirar, podiam viver, podiam reacender uma nova esperança; era o jubileu.
“Peregrinar” e “esperançar” são fundamentos de nossa vida; duas dimensões humanas indissoluvelmente unidas, pois uma não existe sem a outra; duas atitudes que revelam nossa verdadeira identidade. Quando os pés se movem, a esperança se acende; por outro lado, ninguém caminha se não é alimentado pelo fogo da esperança; é a esperança que mobiliza nossos melhores recursos, mobiliza nossos pés e nos faz peregrinos. Enquanto avançamos no caminho, importa colher e acolher o que a esperança oferece. Expandimos a esperança que ilumina a mente e o coração do nosso ser caminhante.
Um conceito inspirador: “ecologia integral”
O tema da Campanha da Fraternidade/2025 vem confirmar que, como seguidores(as) de Jesus Cristo, somos mobilizados(as) a despertar e fortalecer a esperança, inspirada pela nossa fé. Uma esperança encarnada em ações concretas de serviço e proteção da vida, em seu sentido mais amplo: ecologia integral.
A histórica encíclica do Papa Francisco – “Laudato si’ (LS)– sobre o cuidado da casa comum” – fala de ecologia humana, ecologia da vida cotidiana, cultural, económica, social, ambiental, espiritual, etc. Mas, a expressão que engloba todas estas dimensiones, como se fosse um guarda-chuva conceitual, é a “ecologia integral”.
A cultura ecológica não pode se reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais aos problemas que vão aparecendo em torno à degradação do ambiente, ao esgotamento das reservas naturais e à contaminação. Deveria ser uma visão diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham uma resistência diante do avanço do paradigma tecnocrático.
LS n. 111
Uma maneira possível de representar a proposta da “Laudato sí” seria mediante o modelo dos círculos concêntricos, situando no centro a dimensão pessoal, a “ecologia espiritual”, seguida das dimensões social, econômica, cultural e, no círculo mais externo a “ecologia natural ou científica”; como conceito que engloba e abarca tudo temos a “ecologia integral”.
Para o Papa Francisco, portanto, a pergunta pela ecologia nos leva a olhar, em primeiro lugar, à globalidade, ao conjunto da biosfera, aquilo que está acontecendo em nossa “Casa Comum”. Mas, ao mesmo tempo, nos conduz a olhar nosso próprio interior, reconhecendo a importância da ascese, do equilíbrio, dos sentimentos e das relações cuidadosas com nosso corpo, com nosso próximo e com a natureza mais próxima.
Deste modo, partindo do que acontece no interior de cada pessoa, a ação humana se vincula com tudo o que acontece nas relações sociais e econômicas, com a cultura e, por extensão, com a biosfera inteira. Assim, ele repete o mantra que percorre a encíclica, “no mundo tudo está conectado”.
Quando a expressão “ecologia integral” se inspira nos grandes temas bíblicos, como a Criação, a Aliança e a Encarnação, passamos de um mero materialismo a uma visão de reconciliação, re-criação e, em definitiva de ressurreição do Universo inteiro. A íntima relação com Deus não pode ser considerada unicamente em si mesma, como se estivesse desconectada do restante da Criação. Nossa relação com Deus está mediatizada pela Criação em seu conjunto, pelo universo, pelo cosmos. É a mesma e indivisível divindade que atua em nós e na natureza. Cada criatura, habitada pela presença divina, deixa transparecer os atributos do Criador: bondade, misericórdia, justiça, amor… É em nós onde a própria Criação em seu conjunto des-vela e dá nome a Deus através da fascinante história da evolução, uma visão intuída pelo paleontólogo Teilhard de Chardin.
A Criação inteira se revela cheia de esperança já que conhece a realização de sua constante evolução para dar lugar a algo novo, surpreendente, e que só o amor de Deus pode manifestar.
Para além das denúncias e propostas ecológicas, o tema da CF/2025, em sintonia com a LS do papa Francisco, quer contribuir com uma interpelação inovadora e desafiante aos cristãos de hoje; trata-se de apresentar uma “cosmovisão nova”, marcada por uma concepção relacional da Criação e que apela à vivência de uma ecologia verdadeiramente integral, não só no aspecto social e ético, mas uma cosmovisão relacional, holística e não-dualista; falamos de uma realidade na qual tudo está conectado, tudo está relacionado, inter-ligado, entrelaçado, inclusive o próprio Deus (Deus presente em tudo e tudo em Deus). A Criação inteira forma um tecido sem costuras; formamos parte de uma comunhão universal, com a qual estamos numa profunda inter-dependência.
Nos relatos bíblicos já encontramos o fundamento desta cosmovisão, ou seja, que tudo está relacionado, e que o “autêntico cuidado da nossa própria vida e das nossas relações com a natureza é inseparável da fraternidade, da justiça e da fidelidade aos outros” (LS n. 70).
O termo “cosmos” não pertence à tradição bíblica, mas ao mundo cultural grego e que foi introduzido na tradução grega dos LXX; a concepção hebraica fala de “céus e terra”.
Assim, no Novo Testamento, “cosmos” aparece com certa frequência (umas 200 vezes), para indicar a totalidade do mundo. Permanece a visão de uma experiência de harmonia e equilíbrio, mas, contrariamente ao que acontece na cultura grega, o cosmos bíblico é finito. Céu e Terra estão integrados; o finito se faz espaço e revelação do Infinito, e Deus se revela presente nas relações humanas interpessoais e nos cuidados por tudo aquilo que diz respeito à harmonia deste universo.
Os autores bíblicos sabem muito bem que, antes do ser humano nascer havia já uma casa preparada para ele, Casa de Deus ou Natureza (a mesma terra e vida é jardim e é Arca de Aliança de Deus com a humanidade e com a Criação inteira). Mas, ao mesmo tempo, é responsabilidade de cada um construir e cuidar da Arca, como Noé em outro tempo, para que o dilúvio de violência não provoque destruição.
Há uma sintonia cósmica e vital do ser humano bíblico, que tem uma dignidade especial, como imagem e semelhança de Deus, não para dominar e destruir o jardim que recebera como herança, mas para “guardar e cuidar”. Sobre esta base situa-se a “ecologia bíblica”, vinculando o respeito cósmico com a opção preferencial pelos pobres e excluídos da sociedade. Ecologia e justiça social devem andar juntas, de maneira que todos os homens e mulheres possam contemplar a Criação e dizer, como Deus: “E viu que tudo era bom”.
“No mundo tudo está estreitamente interligado” (LS n. 16)
Se nos aproximarmos da natureza e do ambiente sem a abertura para a admiração e o encanto, se deixamos de falar a linguagem da fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos. Pelo contrário, se nos sentirmos intimamente unidos a tudo o que existe, então brotarão de modo espontâneo a sobriedade e o cuidado.
Laudato si’, 11
Esta perspectiva interrelacional entre o ser humano e todas as criaturas se revela como uma “nova ótica”, uma nova visão da Realidade, que supõe também uma nova atitude centrada na irmandade universal, no cuidado e na proteção de todas as expressões de vida.
A consciência de que tudo está conectado supõe “uma preocupação pelo meio ambiente, unida ao amor sincero para com os seres humanos e a um constante compromisso com os problemas da sociedade” (Ls n. 91). De fato, tudo está conectado, inter-ligado e enredado pelo Amor. Há uma comunhão universal de vida.
Como seres humanos estamos intimamente unidos a toda a natureza e a todo o cosmos; fazemos um caminho comum em direção à plenitude. Segundo S. Paulo, a plenitude à qual somos chamados, alcança não só aos humanos, mas a todo o cosmos (Rom 8,20-23)
Para a mentalidade bíblica e cristã, a Criação é o primeiro “templo” no qual o Criador vem ao nosso encontro. Sejam místicos ou cientistas, ou simplesmente uma pessoa com olhar admirativo, todos se sentem impactados diante da surpreendente diversidade de vida e descobrem a Natureza como epifania, manifestação de luz e revelação do rosto providente de Deus.
O ser humano e o cosmos são uma única sarça ardente, cujo fogo que não chega a consumi-los é alimentado pela infinita claridade da Presença d’Aquele que tudo cria e tudo sustenta.
No imaginário místico o cosmos resume a beleza do existir, a pureza da vida, a transparência da luz, o florir da natureza… Sempre haverá “cosmos” quando optarmos pela leveza da vida, pela beleza do humano, pela esperança do crescimento, pela força da comunhão universal.
Essa estreita “inter-conexão de todas as coisas” é experimentada com todas as fibras de nosso ser. De repente, já não somos estrangeiros no mundo, mas irmãos das galáxias, “pó de estrelas”; a nós é revelada uma unidade que não é uma mistura, mas a ilimitada familiaridade entre os seres e as coisas; existe eco entre as seivas do mundo e nosso sangue e a nossa inteligência entra em ressonância com a inteligência existente no universo; há um pulsar uníssono de vida entre todos os seres. Com isso, tomamos consciência que estamos realmente “dentro” da Criação e não “diante” dela.
Aquele que tem o coração desperto nunca está só, porque é próprio do coração permanecer em comunhão com todos os seres, criar familiaridade com mil e uma coisas. O problema é realmente ter um coração, conforme a expressão dos antigos: “Se tiveres um coração, serás salvo”.
No mais profundo da solidão, sentimos que a vida nos ama, que um sopro nos acaricia, que uma presença nos rodeia, que uma existência nos transmite a vida.
A mística ecológica desperta um novo modo de pensar e de conceber o universo enquanto “teia de relações”. Isto significa que há uma unidade fundamental que perpassa todas as partes do universo, na forma de uma “rede”. Nenhuma espécie é autossuficiente; todas são interdependentes. Nós, seres humanos, também fazemos parte desta vasta rede de inter-relações, conectados a todos os elementos da natureza, desde a menor célula até a vastidão do cosmos. Somos quem somos somente na relação e por nossa relação com todas as criaturas e com o próprio planeta.
Vibramos com todos os sistemas de vida que explodem em mil canções e cores. A natureza, como um sistema aberto, nos ensina a sermos também sempre abertos e atentos ao novo, que pode irromper a qualquer momento. A natureza sabe trabalhar com o caos e a desordem; faz deles fatores de mudança, de elaboração de um novo equilíbrio e de novas formas de vida.
Em comunhão com essa transformação, enriquecemos nossa experiência e nossa humanidade.
Daí a íntima relação que existe entre todas as criaturas. Nenhuma espécie é autossuficiente. Todas são interdependentes. Além da relação entre as grandes redes de seres vivos, há também uma íntima relação entre os seres vivos e os não vivos. Oceanos, atmosfera, composição de solos, temperatura, tudo está relacionado como um grande tecido que faz da Terra um planeta excepcional com vida. Nada do que acontece na imensidão do Cosmos nos é indiferente. Tudo está interconectado. Para descobrir por que um ser está vivo é necessário ter um olhar muito profundo. Nadamos na complexidade. Nadamos no mistério.
Desse modo, não é mais possível aceitar que o ser humano esteja acima, nem de fora, mas dentro da Terra, do Cosmos, como “a flor da evolução cósmica”.
Nem podemos acreditar que vivemos separados da Natureza, “autoexilados da nossa placenta”. “Somos Natureza, Terra que sente, que pensa e ama, matéria que em nós chega à reflexão” (Vigil).
Cada um de nós tem 15 bilhões de anos. Viemos de muito longe. Estamos orgulhosos de saber de nossas origens. O universo, ao longo de todo o caminho evolutivo, “desejou” a aparição do ser humano. “Era necessário que a vida e o pensamento estivessem inscritos nas potencialidades do Universo primitivo” (Hubert Reeves, astrofísico). Ele também afirma: “As propriedades da matéria são exatamente as que asseguram a fertilidade do Cosmos e a aparição da consciência”. O fato de conhecer e assimilar essa perspectiva nos faz ver que a nossa existência é preciosa. “Levamos o fermento cósmico em nós mesmos. Ele nos incita a promover a maravilhosa odisseia da complexidade cósmica” (Hubert Reeves). O poeta nicaraguense Esnesto Cardenal se pergunta: “Que Prêmio Nobel nos explicará por que estamos em um Universo que aprendeu a pensar?”.
Se entendêssemos bem o que implica a história do Universo, descobriríamos que, nas estrelas e no Universo inteiro, somos irmãos de tudo. Ao abrirmo-nos à noite estrelada, abrimo-nos às nossas origens; há um parentesco universal. O mesmo poeta Ernesto Gardenal nos ajuda a entender, em seu “Cântico Cósmico”, que quando olhamos as estrelas, somos hidrogênio contemplando hidrogênio.
Tal experiência nos propicia uma fecunda mística cósmico-ecológica. Sentimo-nos conduzidos pela força do Espírito que alimenta as energias do universo e a nossa própria energia vital e espiritual.
Sem dúvida nenhuma, hoje, a consciência ecológica integral nos faz perceber que o Espírito de Deus está soprando. Ao mesmo tempo ela nos convida a nos posicionarmos de maneira diferente no Universo e a levar a sério a responsabilidade que temos sobre a Criação.
Esta cosmo-visão radicalmente nova nos apela a um retorno à “imagem bíblica de Deus”; não é possível mais imaginar um Deus que está fora, que está acima, em um ‘segundo plano superior’, distante do nosso mundo; não tem mais sentido falar de um “fora” e de um “acima” com relação ao cosmos. É aqui que entra o atributo da transparência divina, definida também como “pan-enteísmo”: Deus em tudo e tudo em Deus, “ver Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus” (S. Inácio). Uma visão em que a criação e os seus processos evolutivos estão de algum modo “em” Deus, embora Deus seja muito mais do que a Criação.
Portanto, a nossa imagem de Deus também está em “expansão”. A cosmologia moderna exige uma teologia atualizada.
Ligações externas
- Tempo da Criação
- Jubileu da Esperança
- Bula Spes non confundit
- Campanha da Fraternidade 2025
- Encíclica Laudato si’
Adroaldo Palaoro é padre jesuíta, atua no ministério dos Exercícios Espirituais.
Podcast Rezando o Evangelho | Textos do Pe. Adroaldo
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