O que acontece quando se pratica a vingança infinita


Guilherme C. Delgado

O rei Hamurabi em 1750 A.C. tendo realizado muitas conquistas militares na Mesopotâmia, instituiu um Código, que ganhou o seu nome, com uma lei famosa até os dias atuais – a Lei de Talião; destinada a estabelecer limites punitivos aos agravos sofridos na guerra pelas vítimas, agora  vencedoras, contra seus adversários: “olho por olho, dente por dente”. Tal regra que a modernidade histórica viria a considerá-la ainda bárbara é, no entanto, uma regra de limitação da vingança infinita ou da violência sádica, que imperava nas relações dos assírios contra os inimigos derrotados. E nesse sentido, cumpriu uma função de justiça contextual perante a prática pretérita da vingança ilimitada a critério exclusivo da vontade das vítimas originais.

A Guerra instalada no Oriente Médio desde 7 de outubro de 2023, iniciada pelos ataques e sequestros do Hamas contra populações civis de judeus  residentes ou simplesmente em trânsito por Israel, desencadeou na então vítima – Estado de Israel-, reações de vingança contra o povo palestino residente em Gaza, que nem mesmo respeitam a Lei de Talião ou quaisquer leis de guerra vigentes internacionalmente.

Como resultado da aplicação do critério da vingança ilimitada temos na prática instalado nas semanas subsequentes – o genocídio ao povo palestino residente na  Faixa de Gaza-, além da repressão desproporcional aos árabes e palestinos da Cisjordânia e de alguns bairros de Jerusalém acusados de simpatia para com o Hamas. Nesses três enclaves isolados que restaram ao povo palestino ante a voracidade de ocupação de suas terras, desde 1948 até o presente, mas principalmente em Gaza, temos uma situação absurda, que nem sempre os noticiários refletem.

A Faixa de Gaza é um território urbano densamente povoado em área restrita do tamanho do Plano Piloto de Brasília, com agravante de que sua população não tem direito de ir e vir para além das suas fronteiras com Israel e com o Egito em condições normais; e em condições de guerra a proibição fica absoluta. Lá residem 2,2 milhões de palestinos, com alta predominância de crianças e adolescentes (menores de 14 anos), que representam aproximadamente 40% da população total. Nesse contexto, ao se estabelecer o bombardeio sistemático diário por aviões e artilharia pesada terrestre, supostamente para caçar “terroristas”, pratica-se uma violência ilimitada contra toda a população palestina, principalmente contra os muitos órfãos e viúvas, que ademais, estão privados de água, energia, alimentos, medicamentos e serviços de saúde nas circunstâncias do confinamento e dos bombardeios. É isto é crime de Guerra.

Por outro lado, há outro crime praticado à escala internacional, com recepção privilegiada no Brasil – as tentativas de justificação do genocídio por grande parte da mídia escrita, falada e televisionada, utilizando do subterfúgio, que nem mesmo o Código de Hamurabi acolheria: “Israel tem o direito a se defender incondicionalmente”, tese proclamada desde o início do conflito pelo Presidente Biden. Mas esta tese, galhardamente acolhida pelo Primeiro Ministro Nathaniahu de Israel, é senha condutora ao genocídio, “limpeza étnica”, supremacia judaica etc. que o sionismo foi buscar no pior fundamentalismo bíblico ou até mesmo dos seus algozes do nazismo. Abandonam toda a tradição ética da própria da Torá (Pentateuco) e dos próprios Profetas de Israel, que têm no cuidado e na justiça para com os imigrantes, órfãos e viúvas, exigências éticas comuns ao cristianismo.

Não sei o que é mais grave na conjuntura: ‘a vingança infinita’ ora estabelecida como prática autoconsentida ao Estado de Israel; ou sua “naturalização” e banalização nos noticiários de certas mídias, em completa contradição com os fatos que narram e projetam em suas coberturas da Guerra.

Mas o que não podemos abrir mão neste momento histórico crucial é da nossa solidariedade ativa às vítimas da Guerra, sejam elas da vingança original do Hamas, sejam elas do próprio Estado de Israel, que assume por suas práticas, principalmente em Gaza – o perfil terrorista da “vingança infinita” contra o povo palestino.

Nesta situação trágica, sobem aos céus e se espraia pela terra o clamor de muitos órfãos e viúvas, implorando pelo fim da matança instalada. Nós católicos precisamos nos manifestar, fazendo coro às vozes lúcidas como a do Pe. Júlio Lancelotti e de tantos outros fiéis cristãos ou agnósticos, que sentem sua humanidade profanada com o sangue dos oprimidos vítimas da vingança. E aos opressores, que aprendam com a história sobre o quanto catastrófico é “a solução final” da violência infinita e dos seus holocaustos.

Um reconhecimento devido merece ser destacado: somam-se também aos clamores do presente a reação dos judeus eticamente fiéis às suas tradições dos livros da Torá e dos Profetas de Israel em favor dos oprimidos da história. E disto temos tido inúmeras manifestações.

O caldo de cultura da “vingança infinita” rompe com critérios éticos mais antigos da humanidade, no sentido de estabelecer limites à violência nos conflitos humanos.  Sua presença maligna na história contemporânea é uma questão grave, não apenas na Guerra contra o povo palestino; mas também o é internamente na nossa sociedade, dividida como está por tensões ideológicas e até mesmo religiosas, ora sob a tentação de tolerar o intolerável.


Guilherme Delgado é doutor em economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Imagem em destaque: Lasar Segall (1889-1957). Visões de Guerra, 1940. Museu Lasar Segall – IBRAM/MinC (São Paulo, SP).

Guilherme Delgado Política

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