O marco temporal e suas implicações


Guilherme C. Delgado

A controvérsia em torno da terra indígena
– o marco temporal- e suas implicações atuais

Dois fatos significativos se revelaram no final do mês de setembro, que contraditoriamente repõem a controvérsia título deste artigo, a partir das instituições de Estado.

De um lado, concluiu-se em 21/09/2023, depois de vários anos de julgamento, a apreciação da tese do ‘marco temporal’ sobre os direitos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas, com a afirmação do STF pela larga maioria de 9×2 – da plenitude de vigência do Art. 231 da Constituição Federal (sobre os direitos originários sobre terras indígenas). Essa decisão interpreta esses direitos como integrantes das garantias fundamentais da CF de 1988 (Art. 5º) aplicadas às populações indígenas. Esta é a tese vitoriosa do Relator (Edson Fachin), que em longo e profundo voto (109 páginas- disponível na internet) remove quaisquer pretensões de estabelecer data restritiva específica (ex: 5/10/1988 – data de promulgação da CF de 1988), como critério de comprovação do direito à posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários. Ao contrário da restrição, prevalece a conceituação de direito do Art. 231 da CF sobre as “terras tradicionalmente ocupadas” (Art. 231, parágrafo 1º) como espaço territorial imprescindível à própria sobrevivência das comunidades indígenas, da sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, sem o que desapareceria o próprio direito à vida das pessoas, abrindo caminho aos etnocídios antigos e novos, a exemplo do que se presenciou muito recentemente na terra Yanomami.

De outro lado, em sentido diametralmente oposto, o Senado Federal aprova em 27/09/2023, seis dias depois da decisão do STF, Projeto de Lei de n. 2.903/2023, copiado integralmente da Câmara Federal; que estabelece o marco temporal em 05/10/1988 para reconhecimento do direito de posse às populações originárias sobre suas terras, desde que essas comunidades comprovem que lá estavam na data aprazada. Mas o referido Projeto não retrocede apenas neste aspecto, retrocede no usufruto exclusivo das terras indígenas, retrocede na própria reversão e redestinação das terras indígenas a outros destinatários; retrocede  a uma espécie de liberação geral à exploração econômica  dos territórios, tudo isto na contramão do Art. 231 da CF e obviamente da decisão recente do STF, que interpreta os direitos territoriais do Art. 231 no patamar das cláusulas pétreas da CF.

Acresce ainda lembrar, que na mesma semana em que o Senado Federal aprova o Projeto 2.903/2023, a Câmara Federal protocola uma nova PEC (Projeto de Emenda Constitucional), com o número mínimo de assinatura requerido (175 deputados),  com texto original que estabelece poderes excepcionais ao Congresso Nacional para invalidar decisões do STF, na contramão dos limites constitucionais do próprio Poder Legislativo e obviamente atropelando as funções do STF como Tribunal Constitucional.

Temos postas duas hipóteses sobre essa controvérsia de decisões protagonizadas pelo Congresso Nacional e Poder Judiciário: está aberta uma temporada de crise institucional entre Poderes; ou mais propriamente operam-se  jogos de cena, na linha do “criar dificuldades para obter facilidades’, sendo o destinatário imediato das facilidades requeridas – o Chefe do Poder Executivo e Presidente da República, a quem compete sancionar ou vetar total ou parcialmente o Projeto de Lei  aprovado pelo Congresso (2903/2023), em rota óbvia de colisão com o STF.

Independente da expressão que se venha adotar para a situação criada – crise ou farsa institucional, as consequências em quaisquer dos casos são graves. Vale aqui lembrar, que no caso específico do marco temporal, o PL finalmente aprovado e remetido à Presidência da República, recebeu larga margem de votos em ambas as Casas do Congresso, que tecnicamente poderiam derrubar eventuais vetos presidenciais. O veto presidencial para ser derrubado requer maioria absoluta dos membros da Câmara e do Senado Federal.

Por sua vez, se confirmado pelo Congresso seu texto original, facilmente qualquer Partido Político ou uma gama de instituições da sociedade civil com prerrogativa de recorrer ao STF sobre ações do gênero, poderiam ingressar no STF invocando a inconstitucionalidade evidente do PL 2.903/23, nos termos recentíssimos definidos pela decisão sobre o marco temporal. Essa  situação é conhecida pelos congressistas. Resta-nos perguntar sobre a quem interessa a instabilidade institucional que se forma a partir da disputa de Poderes ora desenhada explicitamente.

Finalmente, é preciso esperar um pouco o movimento real de freios e contrapesos na evolução do processo político, para de fato aferir qual é o sentido do jogo ora em curso. Estaria por acaso a situação contaminada pelas estratégias do “Centrão” – ‘de criar dificuldades para vender facilidades’, neste caso, diretamente endereçadas ao governo Lula; ou de fato há uma extrema direita golpista, mais uma vez atentando contra a ordem constitucional, neste caso utilizando a tese do marco temporal como espécie de estopim às suas bases ruralistas antidemocráticas?

Quaisquer das duas conjecturas propostas podem ser meias verdades, na linha dos jogos de cena imediatistas ou em outro caso, de mais uma tentativa de mudar as regras do jogo – leia-se Constituição Federal; no grito ou na “marra” de uma aliança espúria da extrema direita com o ‘Centrão.’ Mas de imediato precisamos ficar atentos, para não aceitar quaisquer das jogadas de retrocesso ora ensaiadas, identificando oportunamente seus autores.


Guilherme Delgado é doutor em economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Imagem em destaque: Descobrimento do Brasil (1956), de Candido Portinari. Portal Portinari





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