Diferentes dos outros
Osmar C. A. Ferreira
Este ano há duas celebrações jubilares de especial significado para a comunidade LGBTQ: o centenário do filme alemão Anders als die Andern (Diferente dos outros), e o cinquentenário das rebeliões de Stonewall (Stonewall riots), ocorridas em New York. A que comporta maior visibilidade é o cinquentenário das rebeliões de Stonewall.
Há dez anos, quando das celebrações dos 40 anos daquele evento, a Universidade Federal da Bahia, por meio do Grupo de Pesquisa em Cultura e Sexualidade, realizou em setembro de 2010, o evento chamado Stonewall 40 + o que no Brasil? A leitura das contribuições dos diversos participantes permite uma compreensão panorâmica dos debates e da importância daquelas rebeliões e daquele evento acadêmico.
As rebeliões de Stonewall, ocorridas em 1969, na cidade de Nova Iorque, iniciou – nas palavras de James Green – um amplo movimento político nos Estados Unidos que, eventualmente, fortaleceu e positivou os estudos sobre gays e lésbicas.
Stonewall e Diferente dos outros têm em comum o enfrentamento de um sistema jurídico homofóbico. O filme alemão é ainda da era silenciosa, sua estética e sua trama permitem sentir a angústia de quem busca o direito à felicidade. Os gritos que se fizeram ouvir nos arredores do Stonewall Inn, em Manhattan, ecoam ao longo dessas cinco décadas nas reivindicações da Comunidade LGBTQ: o direito à felicidade.
Se há algo fácil de compreender nos enigmas do direito à felicidade é que ele se presta a reduzir a dor e o sofrimento na maior medida possível daqueles grupos ou pessoas que sentem com intensidade o fardo pesado da injustiça.
– Saul Tourinho Leal
O cinema tem se aliado à reivindicação do direito à felicidade da Comunidade LGBTQ, em diversos momentos, com diferentes linguagens estéticas e dramáticas.
Diferente dos outros, dirigido por Richard Oswald, é o pioneiro, sua estreia na Alemanha foi em 28 de maio de 1919. É filme da época silenciosa (cinema mudo), sua estética é própria dos primórdios do cinema. É contemporâneo do aclamado Gabinete do Doutor Caligari, de Robert Wiene.

O filme é um protesto ao art. 175 do Código Penal Alemão que criminalizava a prática de atos homossexuais. O desenvolvimento do filme é de cunho didático, a partir de uma ótica médica, para dar a conhecer ao grande público o comportamento homossexual. Sua intenção era chamar atenção sobre a discriminação social e jurídica sofrida por pessoas homoafetivas na sociedade alemã no início do século XX.
A película passou por diversas situações que comprometeram a sua integridade. Cortes, proibições e destruições que culminaram com a incineração realizada pelos nazistas no expurgo realizado entre maio e junho de 1933. Em 2016 foi apresentada em Berlim o resultado de uma longa e paciente restauração.
Diferente dos outros apresenta o embate jurídico e emocional de um violinista gay que denuncia às autoridades policiais a chantagem que sofre por parte de um homem. Para encerrar a extorsão à qual é submetido, denuncia seu chantageador. Ambos vão a julgamento; cada um recebe sua pena: o chantagista, três anos; a vítima da chantagem, uma semana, a pena mínima prevista no art. 175. Após o escândalo, a carreira do músico está acabada, ele suicida-se. O suicídio nesse filme não é um mero recurso de dramaturgia; é uma dura realidade que o filme Prayers for Bobby (2009) apresenta com grande força dramática.
Ao ver o filme Diferente dos outros, desfilam em minha memória cinematográfica diversos outros filmes que narram as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias de pessoas homoafetivas. Situações de hostilidade, de resistência e de soerguimento. Faço destaque para dois filmes particularmente caros para mim: Un hombre llamado Flor de Otoño, de Pedro Olea (1978) e Una giornata particolare, de Ettore Scola (1977). O filme de Olea transcorre na Espanha sob a ditadura de Primo de Rivera, na década de 1920. Una giornata particolare se passa em 1938, no dia que Hitler visitou a Itália fascista de Mussolini.
Que no transcurso desses dois jubileus façamos memória agradecida pela vida de tantas pessoas que lutaram e resistiram para que o direito à felicidade seja uma realidade para aqueles que são diferentes dos outros.
Filmes mencionados e outros que são correlatos ao tema
Anders als die Andern (Diferente dos outros)
Richard Oswald, 1919 – Alemanha
Victim (Meu passado me condena)
Basil Dearden, 1961 – Reino Unido
Un hombre llamado Flor de Otoño (Um homem chamado Flor de Outono)
Pedro Olea, 1978 – Espanha
Una giornata particolare (Um dia muito especial)
Ettore Scola, 1977 – Itália, Canadá
The boys in the band (Os rapazes da banda)
William Friedkin, 1970 – Estados Unidos
Milk
Gus Van Sant, 2008 – Estados Unidos
Prayers for Bobby
Russell Mulcahy, 2009 – Estados Unidos
Der Kreis (O Círculo)
Stefan Haupt, 2014 – Suíça
Hoje eu quero voltar sozinho
Daniel Ribeiro, 2014 – Brasil
Osmar Ferreira é bibliotecário, membro da Comunidade de Vida Cristã (CVX).
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Nasci em Belém do Pará, moro em Brasília. Sou bibliotecário desde 1985.
Osmar, gostei muito do seu texto. Na semana passada vi ‘Elisa y Marcela’ no Netflix: “Já faz mais de um século, mas a Igreja nunca anulou aquele casamento, por isso ele pode ser considerado a única união lésbica religiosa a ter sido aprovada na história. Em 8 de junho de 1901, duas professoras galegas, Marcela Gracia Ibeas e Elisa Sánchez Loriga, se casaram na paróquia de Dumbría (província de A Coruña).” Em preto e branco, parece-me que não foi possível colher muitos dados da história real. É uma história bonita, mas muito triste também. E delicado.
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