Moções e algoritmos: a pressa é inimiga do discernimento
João Melo
A vida nunca foi toda preto e branco. Ela é cheia de nuances, condicionamentos e situações particulares. É por isso que fazemos discernimento: para tentar ver com clareza e agir para além de uma reatividade banhada em emoções e desprovida de sentido. Parece que eleger segundo a vontade de Deus passa mais facilmente por esse caminho.
Entretanto, na espiritualidade inaciana, isso nunca significou o descarte dos sentimentos e movimentos internos do coração – a que chamamos moções – como se bastasse uma decisão ”prática, objetiva e racional” para ser “assertivo”. Muito pelo contrário, os sentimentos são centrais no processo de discernimento porque nos ajudam a tomar consciência dos desejos profundos que nos movem.
Se ilude quem acha que pode colocar o coração “de lado” e agir só com a cabeça. Ninguém é tão racional que abafe seus afetos, sentimentos e desejos, elementos que constituem sua humanidade criada e querida por Deus.
Truncar a capacidade afetiva pode ser uma estratégia de distanciar-se internamente por medo de acessar a própria profundidade ou negligência espiritual. Em ambos os casos, convém dizer abertamente: o que parece “ataraxia” racional é, na verdade, manifestação de frieza e desconexão consigo mesmo. Nesses casos, basta a pessoa humana cultivar abertura para afetar-se pelas coisas simples da vida, que logo resgatará sua sensibilidade imagem e semelhança divina.
Por outro lado, há momentos em que agimos com reatividade e energia desproporcional à necessidade real das circunstâncias em que estamos situados. Isso não significa relativizar a grandiosidade dos acontecimentos que podem nos circundar, mas perceber o nosso lugar e dar-se conta da melhor atuação que ali nos cabe naquele momento. E tudo isso pode nos exigir uma resposta nova com a mudança do contexto.
De fato, muitas vezes, os sentimentos avassaladores, mesmo que bons e justos em si mesmos, constituíssem como “pontos cegos” que nos impedem o discernimento mais arguto.
Na contemporaneidade, isso se torna mais presente nas mídias sociais, ambiente digital propositalmente pensado para gerar efeitos “manada” de encantamento, ódio e indignação. O sentimento à flor da pele e o senso de urgência implícito geram as interações que monetizam as redes. Quem ganha com isso? Aliás, é esse tipo de pergunta que precisa ser feita, na vida interior, a cada um dos sentimentos na nuvem em nós despertada. De onde vem esse sentimento? O que ele me provoca? O que ele me causa? Para onde me leva? Quem tem interesse ou ganha em mover-me para essa direção?
Para as narrativas dos algoritmos, tudo é simplificado entre os opostos absolutos. Algo é bom e algo é ruim. Bem e mal. Meu lado e o lado dos inimigos. Criam-se os muros. Destroem-se as pontes. Cessa o diálogo e erguem-se os “pontos cegos”. A complexidade da vida, as nuances das situações, os elementos que pedem mais esclarecimentos e discernimento são ignorados. Quem tem pressa em que você emita seu juízo nas redes? Será que é pressa para mudar a realidade ou pressa para monetizar mais uma das suas interações?
Nesse jogo de poderes e contrários — não tão opostos assim, as redes sociais tornam-se uma arena de batalha onde a manipulação revestida de combate espiritual ganha curtidas e acelera a disseminação da desinformação. O pulular das mensagens instantâneas, como num ringue digital, não nos permite o tempo necessário para a ponderação e o discernimento. Facilmente cai-se na ilusão de que engajar-se com rapidez no algoritmo que sobe a hashtag é o mesmo que posicionar-se assertivamente.
Poucas vezes se faz discernimento diante das informações da internet. Não é possível “ajuizar” cada post curtido.
Mas aqui não trata-se disso. Penso que um passo importante é vencer a “necessidade” incutida pelos mecanismos das redes de opinar para existir. De fundo, há um medo de invisibilidade, de ser deixado para trás, de não existir, caso não se engaje nas redes. Mas, a verdade é que a realidade é maior e mais complexa do que o que o ambiente digital performa.
João Melo é professor, escritor e paulistano. Descendente de retirantes da seca de 1915, no Ceará e Piauí; e de apanhadoras de flores sempre-vivas da Serra Negra, em Itamarandiba (MG). É licenciado em Filosofia, bacharel em Teologia, mestrando em Educação na UERJ. Tem livros e artigos publicados em periódicos, revistas e portais digitais. Atualmente, vive no Rio de Janeiro.
Imagem: Lígia de Medeiros. Passando para o outro lado.
Espiritualidade inaciana algoritmo desejos profundos Desinformação Discernimento Discernimento inaciano nas redes sociais disseminação da desinformação economia da atenção Espiritualidade inaciana maturidade afetiva moções monetização polarização reatividade emocional Redes sociais sentimentos vida interior
João Melo Visualizar tudo →
Descendentes dos retirantes que enfrentaram a seca de 1915 (PI/CE) e das apanhadoras de flores sempre-vivas ao pé da Serra Negra em Itamarandiba (MG). Paulistano que vive no Rio de Janeiro. Autor de “Entre Eva e Mapana” (Editora Pluralidades, 2023) e de livros da série “Ensaios Teológicos Indecentes” (Editora Metanoia, 2024).
