O rei e a fonte de água
João Melo
ERA UMA VEZ um jovem rei muito poderoso e cheio de majestade que tinha um único medo: ser traído pelos nobres de sua corte e perder seu reinado. Conforme seu medo aumentava, o jovem rei isolava-se cada vez mais. Encastelado em si mesmo, passou a viver sozinho. Já não recebia visitas e por nada nessa vida deixava o seu castelo. Julgava-se no absoluto controle.
Certo dia, subiu à torre mais alta do castelo a fim de contemplar o seu reinado e pôs-se a fazer memória de como era bom quando, outrora, passeava pelos campos e sentia a suave brisa do vento. Ele olhou mais adiante e viu as terras além de seu reino e lembrou-se de uma vez em que se aventurou naquela região desértica, de como no caminho teve sede e um jovem lhe levou a uma fonte de água borbulhante, cujo sabor não podia ser descrito com palavras humanas ou na língua dos anjos. Ah! Que saudades daquele dia! Que saudades daquela água! Nasceu no íntimo de seu coração o desejo forte de um dia voltar àquela fonte. E o rei passou a subir todos os dias até a torre mais alta para sonhar com o dia em que poderia realizar o seu desejo profundo. Mas, o medo de deixar o castelo e perder seu poder o impedia…
Certa vez, um terremoto cruel sacudiu todo o reino, mas o castelo real permaneceu intacto e poderoso. Rapidamente, o rei subiu na torre mais alta para ver os estragos que o terrível tremor tinha causado ao seu reino. Ele não viu nada de grave, até que percebeu que surgira um largo abismo cujo começo e o fim estavam para além do horizonte de onde o olhar podia alcançar. O abismo separava por completo os campos do jovem rei, das terras desérticas onde antes havia encontrado a fonte de seu coração. Estavam agora separados para sempre. Ao dar-se conta disso, o jovem rei começou a chorar de tristeza. E dia após dia, subia à torre mais alta do castelo, fitava o intransponível abismo e chorava amargamente um choro seco que podia ser ouvido por todo o reino e além.
Aconteceu que, nas terras desérticas do além-reino, o jovem que outrora apresentara a fonte borbulhante ao jovem rei, escutou o choro dele e, movido em compaixão, aproximou-se para ver qual era a origem de tanta dor e tristeza. Pondo-se à beira do abismo, gritou:
– Ó poderoso rei! Não quero ofender a sua majestade, mas, atrevido como sou, ouso vos perguntar: Por que choras?
O rei respondeu:
– Agora é tarde, meu caro! Com esse abismo entre nós, já não poderei mais realizar o meu sonho de um dia voltar às águas daquela divina fonte que tu me apresentaste!
Ao ouvir isso, o jovem misericordioso construiu uma ponte entre as terras desérticas e os campos do jovem rei. Quando a ponte ficou pronta, se pôs à porta do castelo e gritou ao rei:
– Oh soberano rei! Seu clamor chegou aos meus ouvidos e tocou-me o coração. Por isso, vos fiz uma ponte, para que desças e vá ao encontro à fonte que tanto amas!
Mas o rei tinha medo de deixar o castelo e perder seu reinado. O jovem construtor de pontes, vendo o medo que paralisava o jovem rei, foi à fonte, buscou um pote da divina água e trouxe às portas do castelo. O rei apressadamente abriu uma fresta da porta principal de sua fortaleza, pegou o pote com o seu líquido sedutor e trancou-se novamente. Ah! Que dia feliz passou o jovem rei! Que ambrosia de água era aquele pote! Mas pote não é fonte e no dia seguinte o jovem soberano voltou a ter sede e começou a chorar como antes.
O construtor de pontes, que era rico em misericórdia, tornou a trazer a santa água, num balde maior que o pote da primeira vez. O rei, vendo que o construtor de pontes agia com generosidade, fez-lhe uma deferência real e agradeceu-lhe profundamente pela nobreza de seu gesto. Dias depois, porém, o rei voltou a ter sede e entregou-se às secas lágrimas de seu choro antigo. Mas, dessa vez, o construtor de pontes pôs-se às portas da fortaleza real e gritou ao rei:
– Ó majestoso rei! Com todo o respeito e afeição que tenho à vossa realeza, decidi que, para vosso bem, não vos trarei mais água da fonte que não seca. Todavia, se quiserdes caminhar em minha companhia pelo caminho que leva à fonte eterna, podereis encontrar-me na ponte que construí para vós.
Depois de longa meditação o rei sentiu uma coragem mistérica e deliberou que finalmente sairia do castelo. Escolheu seu manto mais esplêndido, adornou-se com sua coroa preciosa e foi ao encontro do construtor de pontes que se alegrou imensamente ao vê-lo. O desejo de encontrar a fonte crescia no coração do rei.
Pelo caminho das terras desérticas, o jovem rei percebeu que seu manto era um estorvo à caminhada. Ele pesava às suas costas, e, ao bem da verdade, a areia já o tinha transformado em um trapo sujo e enrugado. Então, o jovem soberano decidiu deixar o manto para trás e seguir viagem. O sol brilhava forte por aqueles dias e o deserto escaldante tornava a coroa um pedaço de metal quente que incomodava o jovem rei. As pedras preciosas pareciam absorver o calor de modo a tornar insuportável usar solenemente o símbolo de sua realeza. Não houve outro jeito, o rei teve que deixar sua coroa para trás. Entretanto, logo percebeu que agora caminhava mais livre e leve, e gostou do que sentiu. Então, fez a seguinte oração:
Ó deserto habitado de pululante mistério a irromper pelas douradas areias num divino vento que leva, qual canto de sereia, o sussurro espiritual a fomentar a sede de água viva, de pulmão aberto aspiro esse pó dourado que preenche o vazio de minh’alma e que num leve vai e vem me faz ansiar pelo encantado canto do Espírito que diz: “Vinde às águas”!.
E o jovem já não era mais rei, era mais humano do que fora, era agora um jovem peregrino em busca da fonte de sua vida.
Já próximos do lugar onde estava a fonte, o jovem peregrino avistou algo novo: um oásis vívido e envolvente. Olhou para o construtor de pontes como quem perguntava “É ali?”. Ao que ele respondeu:
– Lá está sua doce fonte! Corra ao seu encontro, meu caro amigo!
O jovem peregrino sorriu largamente e, veloz como um tigre, atirou-se aos pés de fonte tão bela e embebedou-se de seu sabor inominável. Ah! Que felicidade divina encontrou o antigo rei! E desejou nunca mais voltar ao seu velho castelo.
Pouco depois, o jovem peregrino percebeu que a todo momento, peregrinos como ele vinham saciar-se nas águas repousantes da fonte inesgotável. Muitos deles vinham trazidos pelo construtor de pontes e por outros que, como ele, viviam ao redor da fonte de água viva. Passados alguns dias aí, o jovem peregrino podia jurar que o oásis paradisíaco onde estava a fonte crescia ao redor dela, e que o deserto das terras além encolhia cada vez mais. E notou também que muitos dos que se saciavam na fonte, escolhiam ficar e juntar-se ao grupo dos que ajudavam os peregrinos em suas caminhadas. O jovem peregrino viu que aquilo era bom e que uma vida assim era repleta de sentido. Decidido a juntar-se ao grupo, foi perguntar a um dos que ali estavam pelo rei da Terra da Fonte, a fim de pedir-lhe permissão de ficar e servir como os outros. E recebeu a seguinte resposta:
– Rei da Terra da Fonte? Meu caro peregrino, aqui não há um só rei! Somos todos um povo de reis, estirpe nobre e honrada. Se tens coragem e generosidade para amar e servir, então sê bem-vindo e me ajude com aquele peregrino cansado que ali se aproxima.
Pouco a pouco, aquele jovem que fora rei e peregrino, incorporava-se à missão da fonte de sua vida.
Uma vez aconteceu que, em meio ao seu trabalho, o jovem percebeu que um fiozinho da água da fonte escorria para fora do oásis, rumo à região desértica. “Para onde será que corre essa água?”, perguntou-se. Então, movido por uma força misteriosa, pôs-se a seguir o teimoso fio d´água deserto adentro. Dado alguns passos da fonte, viu que estranhamente já estava seguindo um pequeno riacho e que quanto mais distanciava-se, mais as águas pareciam aumentar em força e quantidade. De repente, já havia caminhado até o antigo abismo que separava seu velho reino, da Terra da Fonte. Nesse momento, olhando para dentro do penhasco, admirou-se pela bonita cascata que o rio das águas da fonte ali formava antes de tornar-se um rio profundo e caudaloso lá no fundo do abismo.
“Bonito, não é?”, Disse uma voz conhecida que vinha de alguém sentado à beira do abismo, contemplando a beleza única da cascata e do rio lá embaixo; Era o construtor de pontes. E ele prosseguiu dizendo:
– Saiba, meu amigo, que aqueles que se atiram às águas da fonte no penhasco abaixo unem-se a elas de tal maneira que em suas veias passam a correr sangue e água da fonte. E que estes, nunca mais sentem sede.
E o jovem pôs-se a pensar sobre aquelas palavras. Fitou o construtor de pontes como quem analisa para certificar-se de que não está sendo enganado. “Será que depois de mostrar-me tanta generosidade, ele está me traindo?”, duvidou ele.
Mas a verdade é que havia no jeito do construtor de pontes falar sobre o salto às águas do abismo, alguma coisa que fazia crer que ele já saltara às águas antes, pois ele falava com autoridade e verdade de uma experiência vivida.
Então, o jovem que fora rei e peregrino, fitou-o novamente enquanto pegava distância, como que para pegar impulso, e disse:
– Quero me jogar nesse abraço de abismo infinito e num grito ecoado no silêncio interior da terra-coração, estremecer as tramas da minha existência perene, declarando-Te não com palavras, mas com sangue e água que eu te amo, ó Majestade Eterna!
E com um sorriso de liberdade no rosto, pulou ao encontro da vida. O construtor de pontes, com lágrimas nos olhos e rindo de alegria, comemorava a nobreza do rei.
Mosteiro jesuíta de Baturité (CE), junho de 2018,
durante Exercícios Espirituais de 30 dias.
João Melo é professor, escritor e paulistano. Descendente de retirantes da seca de 1915, no Ceará e Piauí; e de apanhadoras de flores sempre-vivas da Serra Negra, em Itamarandiba (MG). É licenciado em Filosofia, bacharel em Teologia, mestrando em Educação na UERJ. Tem livros e artigos publicados em periódicos, revistas e portais digitais. Atualmente, vive no Rio de Janeiro.
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Descendentes dos retirantes que enfrentaram a seca de 1915 (PI/CE) e das apanhadoras de flores sempre-vivas ao pé da Serra Negra em Itamarandiba (MG). Paulistano que vive no Rio de Janeiro. Autor de “Entre Eva e Mapana” (Editora Pluralidades, 2023) e de livros da série “Ensaios Teológicos Indecentes” (Editora Metanoia, 2024).
