Com Inácio nos caminhos de Montserrat: fé, sexualidade e projeto de vida
João Melo
Depois que se recuperou do ferimento da batalha em Pamplona, Inácio de Loyola iniciou uma longa peregrinação. Logo no início dessa andança, o peregrino teve um importante encontro com Nossa Senhora de Montserrat.
Tenho para mim, que quem peregrina está em busca de encontrar a si mesmo e aberto a novas pertenças do coração. Peregrinar é pôr a vida em movimento. Pegar a estrada mobiliza os afetos e desejos, conduzindo a novas direções. Na verdade, penso que só quando ponho os pés a caminho, é que começo a empreender na realidade da vida as decisões discernidas. A confirmação de minhas escolhas se dá em contexto, quando sou chamado a agir com generosidade e coragem.
Há um ditado popular que diz: “as abóboras se ajeitam no andar da carruagem”. Como alguém que nasceu nos anos 90 e na infância assistiu filmes animados da Disney, a ideia de uma carruagem com abóboras me remete à imagem da Cinderela correndo do príncipe à meia-noite, com sua carruagem mágica que, na verdade, era feita de abóboras e que, aos poucos, volta a ser abóbora, comprometendo o seu trajeto de fuga.
Fugir não é peregrinar. Quem foge não presta atenção no caminho, pois o medo o põe para correr. Na caminhada de um peregrino, a pressa impede que se aprecie os detalhes, lugar privilegiado onde o coração é tocado. É preciso fazer pausas e restaurar as energias da caminhada. Montserrat foi uma pausa na caminhada de Inácio. O que ele andou pensando pelo caminho (Lc 24,17)? No caminho para o mosteiro da Virgem, Inácio refletia sobre as grandes obras que desejava realizar por amor a Deus (Autobiografia, n.17).
No caminho para Montserrat
Inácio estava com a cabeça em questionamentos sobre sua sexualidade e seu futuro. Sabemos desse episódio da intimidade de sua vida interior porque seu confidente, Laínez, registrou que “ele decidiu ir para Nossa Senhora de Montserrat; e porque tinha mais medo de ser vencido no que diz respeito à castidade do que em outras coisas, fez no caminho voto de castidade, e isso a Nossa Senhora, a quem tinha especial devoção”.
Inácio desejava expressar sua afetividade de forma saudável e de acordo com seus desejos profundos. Criada por Deus, a sexualidade diz respeito a toda a dimensão relacional da pessoa humana para que se conecte com Ele, consigo mesma, com os demais e com a Casa Comum. Portanto, engloba afeto, desejo, intimidade, prazer, emoções, sentimentos e influencia pensamentos, ações e interações. O ato sexual faz parte das expressões da sexualidade humana desejada por Deus. Inácio, entretanto, queria viver um amor casto à Virgem que tinha diante de seus olhos. É no caminho até Montserrat que ele ganha alguma iluminação sobre esse ponto que lhe preocupa.
Mesmo os biógrafos mais competentes de Inácio não possuem detalhes sobre como isso aconteceu exatamente, tamanha é a intimidade do episódio para a vida do peregrino. O silêncio sobre isso não significa menor importância, mas o quanto sua resolução é pessoal e não institucional. Talvez justamente por tratar-se de algo muito particular, isto é, que Inácio percebeu não ser um caminho proposto a todas as pessoas, é que ele não enfatiza esse episódio em sua própria autobiografia. Seja como for, esse momento marca uma mudança na vida do santo que se compromete exclusivamente à “Dama de seus pensamentos”.
Inácio foi afortunado de chegar aos pés da Santa de Montserrat com uma opção de vida de “oferecer-se a Deus por mediação de Nossa Senhora” (Villoslada, SJ) que era uma escolha à sua época enaltecida pela Igreja como “estado de perfeição”. Porém, infelizmente, o celibato não era realidade vivida por todos que o tinham como opção de modo de vida cristã. O próprio irmão de Inácio, que era padre, tinha lá seus problemas com essa promessa. O celibato cristão ou é vivido como um dom, ou tornando-se um sofrimento e fonte de constante infelicidade por ser vivido como uma mutilação afetiva.
De qualquer modo, é possível contemplar a peregrinação de Inácio até Montserrat e sentir-se tocado por outras opções de vida diferentes da que ele fez. Na verdade, cada pessoa que põe os olhos diante da imagem da Virgem, pode tomar consciência que o sonho de Deus para ela é tão “perfeito” quanto o celibato foi para Inácio. É preciso perguntar-se com honestidade: Qual é a sedução divina que me clama ao pé do ouvido quando contemplo a imagem da Virgem?
Como ensinou o papa Bento XVI, o cristão não faz uma opção de pertença do coração a uma ideia, teoria ou a uma instituição, mas isso é fruto de um encontro pessoal e amoroso (Deus caritas est, n.1). A pessoa humana é chamada a abraçar projetos de vida condizentes com suas aspirações mais profundas, para onde mais naturalmente direciona sua energia vital e em que ela possa estar inteira e de todo o coração (Mt 6,21).
Diante de Nossa Senhora de Montserrat

O que muita gente não sabe, é que a imagem de Nossa Senhora de Montserrat é carinhosamente chamada de “La Moreneta”, em português, “A Moreninha”.
Ela recebe esse nome devido à cor negra da imagem, resultante da fumaça das velas, caso parecido com a imagem de Nossa Senhora Aparecida, no Brasil, que também é negra.
Mulheres negras são quase 28% da população brasileira, o maior grupo populacional do país. Porém, mulheres e meninas negras são as pessoas que mais vivem em vulnerabilidade social e ocupam poucos espaços de decisão. Especialmente as moradoras de periferias, morros e favelas, enfrentam barreiras significativas no acesso a todos os tipos de direitos e serviços públicos, inclusive aos meios adequados para questões de saúde.
É a partir dessas mulheres que hoje contemplo a “Virgem Moreninha”, entronada numa cadeira de Mestra, sede de sabedoria, e a vejo mulher negra, ladeada por afirmações de fé debatidas apenas por homens em reuniões conciliares sobre o seu jeito de ser mãe e até sobre o seu próprio corpo feminino.
O Espírito Santo na tradição bíblica é expressão da feminilidade Divina e por isso pode ser traduzido como a Ruah de Deus, que quer dizer sopro divino. Sob o consentimento de Maria, a Ruah de Deus, feminilidade Divina, uniu-se no útero dessa santa mulher para de sua carne, juntas, trazerem Jesus ao mundo, todo humano e todo divino que Ele é: Eis o mistério da Encarnação (Jo 1,14). A gravidez solidária de Maria à Divindade feminina, Ruah de Deus, que nela habitou (Lc 1,35), é expressão do seu desejo de colaboração na missão de salvação de todo gênero humano, e do humano de todo gênero (Lc 1,38). O corpo de Maria é templo da Ruah de Deus, território sagrado (1Cor 6,19). Jesus não nasce de um gesto truculento que desrespeita o corpo da mulher. Deus não violentou Maria.
Assim, não é da vontade de Deus que alguma mulher se sinta abusada ou violentada por qualquer pessoa ou instituição. Por essa razão, não parece ser da vontade de Deus que alguma pessoa com útero deva ser assediada a uma gestação que não brote do seu desejo profundo e de sua eleição discernida de projeto de vida.
Os nossos ‘sim’, como o de Maria, devem ser a um projeto de vida sonhado por Deus e desejado pela pessoa humana, “deixando agir diretamente o Criador com a criatura e a criatura com o seu Criador e Senhor” (Exercícios Espirituais, n.15). Em nossos tempos, é preciso cuidar para que decisões de governo não deixem de considerar adequadamente os direitos das mulheres e as criminalizem em casos em que tenham sofrido alguma violência, especialmente aquelas mulheres em situação de vulnerabilidade.
Nossa Senhora de Montserrat tem uma história milagrosa. Segundo antigos escritos, sua imagem foi encontrada por uns pobres pastorinhos em 880, em uma distante caverna na montanha de Montserrat, após seguirem uma luz misteriosa. Quando tentaram mover a imagem para o centro da cidade, ela se tornou tão pesada que foi impossível movê-la, evidenciando o desejo da Virgem de permanecer no local onde foi encontrada, na periferia da montanha sagrada. “A Moreninha” queria permanecer com os pobres.
A Companhia de Jesus, congregação fundada por Santo Inácio de Loyola, tem como uma das suas prioridades de missão no tempo presente caminhar com os empobrecidos, os descartados do mundo, os vulneráveis em sua dignidade, em uma missão de reconciliação e justiça.
Para marcar sua nova vida, Inácio realizou uma vigília, vestido como cavaleiro, na noite anterior à festa da Anunciação, em 24 de março de 1522. Doou suas roupas finas a um mendigo e vestiu-se com um hábito feito de pano de saco. Passou a noite ora de pé, ora de joelhos, diante do altar de Nossa Senhora de Montserrat, em oração fervorosa. Aos pés do altar, pediu que pendurassem sua espada e seu punhal, simbolizando a renúncia às suas antigas aspirações de cavaleiro e a dedicação ao serviço de Cristo.
Após uma noite de oração, Inácio partiu de Montserrat ao amanhecer, desejando evitar qualquer reconhecimento e honra de nobre cavaleiro. Assim, Inácio abraçava uma vida de quem caminha com os pobres, a exemplo do desejo de sua “Senhora Moreninha”.
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Descendentes dos retirantes que enfrentaram a seca de 1915 (PI/CE) e das apanhadoras de flores sempre-vivas ao pé da Serra Negra em Itamarandiba (MG). Paulistano que vive no Rio de Janeiro. Autor de “Entre Eva e Mapana” (Editora Pluralidades, 2023) e de livros da série “Ensaios Teológicos Indecentes” (Editora Metanoia, 2024).
